As mãos do pianista não descansaram sobre seus joelhos nenhum instante, embora não fossem muitos os que dançavam as lindas músicas. Belas mulheres, esculpidas por vestidos majestosos, rodeadas de imponentes homens cujos trajes traziam insígnias reluzentes. A noite de lua cheia fora esquecida dentro do castelo, onde o burburinho das senhoras e as risadas dos homens mais velhos ecoava por todos os cômodos.
Da Sala de Armas saiu um homem apressado, ajeitando os cabelos longos para dentro do pedaço de fita. Pela expressão, notava-se seu atraso para a cerimônia. Desceu as escadas aos pulos, diminuindo o passo nos últimos degraus. Procurava ansioso uma dama por quem se encantara há muito, desde que os dois eram crianças. Tinham sido afastados quando a família dela resolveu ocupar novas terras, fruto de alguma herança misteriosa.
Breve silêncio - o pianista foi descansar, se servir do que sobrara do banquete. Era um jovem viúvo, capaz de receber um ou outro olhar devasso das moças mais atrevidas, que nunca realmente conheceram o significado de honra. Passou por uma mesa coberta de cálices vazios, onde um casal meio embriagado trocava palavras no ouvido um do outro. Reconheceu outra jovem a sua frente, cujo vestido não era claro nem brilhante como o das demais.
- Não te vi dançar.
Ela sorriu graciosa, fechando os olhos ternamente antes de voltar à posição inicial - os braços cruzados e o rosto sério. Devia ser a única que realmente respeitava o trabalho do músico, colocando-o em um nível de importância acima de qualquer outro ofício - apesar de gozar da riqueza, não sentia necessidade e nem via razão no luxo. Passava a maior parte do dia montada em um cavalo, ao contrário das damas que desde cedo se concentravam em bordar seus enxovais.
Os trajes em cor diferente fizeram um terceiro homem ser notado na porta principal, que dava acesso aos jardins. Não era da Família Real, mas todos que moravam na região o conheciam como um nobre viajante, hóspede de um importante amigo do rei. Não estava disposto a perder o grande baile, mas tinha um motivo diferente para isso: o prazer de beber e comer à vontade, com boa música e donzelas à disposição lhe parecia ínfimo.
Tocou o chão com rapidez - os olhos fixos na jovem que tanto procurara, na tentativa de não perdê-la de vista (nunca mais). Atravessou o salão, desviou de candelabros e empregados, se desvencilhou de crianças e cadeiras que obstruíam seu caminho. Sorriu afoito, lhe faltava o ar - a idéia de ter tão perto novamente sua preciosa menina, a única que um dia arrancara dele uma promessa.
Os dedos pálidos voltaram a tocar as teclas esmaltadas, produzindo uma melodia doce e convidativa. O salão, visto do alto, parecia recheado de babados coloridos, que rodopiavam alegremente de um lado para o outro. Parecia preencher todos os espaços, mas o pianista sabia que o vazio sob o grande lustre de cristais só era digno de uma das mulheres presentes.
Para Tallulah, o viajante era um desconhecido qualquer. Para ele, ela poderia ser apenas uma aventura - e que desperdício, pensariam os observadores. Mas quis o destino manter os dois separados, infelizmente, mas enlaçados por semelhanças ainda não descobertas. De um homem curvado diante da linda dama surgiu um convite inesperado. Não foi recusado, nem aceito com louvor. Ela não queria dançar, não aquela música. Além disso, ainda que não fosse sua intenção mencionar, estava claro que ela esperava ter a companhia de outra pessoa.
Ele se mostrou desapontado e ofendido, lamentando que ela estivesse prometida a outro homem. Não estou, ela respondeu, analisando-o com atenção. Sua fisionomia não lhe era desconhecida, mas fugia-lhe da memória a identidade de seu galante admirador. Perguntou seu nome, mas a resposta foi negada. Arriscou palpites, mas nenhum com muito sucesso. Ouviu, então, uma longa e dramática história, sobre percorrer campos durante dias e noites sem fim e enfrentar uma série de infortúnios - tudo para vê-la mais uma vez, tocar sua pele e ter a certeza de que a mulher dos seus sonhos era real e tinha aroma tão bom quanto o da lembrança.
Se amaram no passado, mas o tempo lavou qualquer resquício de paixão que impedisse Tallulah de lutar por sua liberdade - não gostava de se ver presa às coisas, resistia às inevitáveis e constantes ofertas de casamentos, cada um com um plano de futuro promissor mais pomposo que o outro. Só não era considerada a vergonha da família por ser realmente a mulher mais bonita do reino, o que conferia uma série extra de adjetivos. Ela não só se espantara com a confissão em que se transformaram suas brincadeiras inocentes de infância, como deixara isso transparecer em seus gestos enquanto se explicava, um tanto impaciente.
O homem das vestes azuis interrompeu a conversa, silenciando os dois - os olhos do outro faiscando. Tomou o braço de Tallulah gentilmente, esboçando um sorriso. Não fora tímido ao fazer um sinal para o pianista que, consentindo, alternou a escala de notas musicais, dando início a uma nova sonata... diferente e um tanto especial, que nunca fora apreciada antes. Todos os penteados não faziam sentido, nem rendas, nem jóias: quem tivesse a delicadeza de apreciar as feições do casal que se encaixava na coreografia entenderia que nem tempo nem distância seria capaz de separar os dois desconhecidos - amantes em silêncio.
Sonata Arctica