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domingo, 17 de janeiro de 2010

Completamente idiota.

E eu disse "Que droga, abre essa porta! Não quero me sentir um idiota completo.", mas quem me respondeu foi um vizinho. Resumindo, ele me xingou de várias coisas por estar gritando no corredor do apartamento dele de madrugada. E a vadia nem se prestou a me olhar da janela, ainda que fosse pra rir de mim quando eu tropecei num negócio que estava no caminho. No meio da rua, de madrugada, com chuva até na cueca: um verdadeiro idiota. Pra melhorar, não tinha nenhuma bosta de cafeteria aberta. Nem bar. Se eu decidisse que meu refúgio seria muita cachaça ou o que tivesse pra beber, nem assim eu conseguiria cumprir meu destino. Cheguei em casa e tive a capacidade de rasgar a manga da minha camisa na fechadura. Abri o armário, me sentindo um homem ferrado. Ferrado, mas homem. Sem potinhos coloridos na cozinha ou toalhas de renda pela casa: homem. E não tinha café! Não tinha a porcaria do café. E eu voltei a me sentir como um garotinho de 12 anos quando sentei à mesa sozinho e enfurecido para tomar leite. Leite com achocolatado. Não gosto do gosto de leite e admito isso, o que talvez faça de mim menos homem que os meus amigos. Quer dizer, quanta asneira! E daí eu fiquei com aquele nervosismo de quem sabe que tem que dormir (mas que não vai conseguir dormir), mas que não agüenta esperar pelo dia seguinte para ver como vão ficar as coisas. O problema em ser um idiota é que você sempre tende a fazer as piores escolhas. E, independentemente de fazer do melhor ou pior modo, as conseqüências sempre variam do grotesco e previsível ao caos total. Pensei em voltar lá e dizer pra minha namorada que eu não ia ficar atrás dela, que ela abrisse de uma vez a porta e parasse de criancisse... senão eu ia embora - definitivamente. Na verdade, foi o que eu tentei fazer da última vez que eu fui lá, quando o vizinho me botou pra fora e ameaçou chamar a polícia. Não nasci pra protagonizar cenas de amor. Pra mim essas coisas nunca dão certo. Eu esqueci de comprar café porque estava ocupado demais pensando em como explicar as provas da minha traição idiota. Verdadeira traição idiota: se fosse uma vadia gostosa, mas nem disso eu fui capaz. Levei qualquer uma pra casa, já era fim de noite e eu também não tenho muitas opções naturalmente. Sabe como é, "pegar ou largar". E eu peguei. E não foi ótimo nem nada, foi bonzinho. Sabe como é. O problema em admitir uma situação dessas é que a gente acaba ficando na mão dos outros. Na mão da namorada e até das amigas dela. Tô dizendo. Já me disseram - até meu pai já disse - que essas coisas são assim e a gente não pode admitir. Mas ela sabe que eu sou um idiota e etc. E o porcalhão do vizinho dela também. Acho que eu deveria tentar dormir. Ah é, eu estou molhado. Tinha me esquecido. Droga de camisa rasgada!



 

SL (parte 3)

Cabelos castanhos despenteados, presos com uma fita de cetim verde. Chiclete sabor tutti-frutti. Fones de ouvido. Olhos grandes e expressivos. Do tipo que atravessa a rua sem olhar para os lados, se baseando apenas nas "vibrações do chão". Camiseta cinza com estampa do Mickey. Saia rodada e joelhos machucados.


Gritei "Mary" e ela permaneceu parada na fila do caixa. E eu disse "Oh, Susie" em volume mais baixo, o que provocou um sorriso breve naquele rosto quase angelical. Ela só se rendeu quando ouviu "Hey, Jude" - resistiu a "Dana O'Hara" e "Jamie", mas só voltou-se para mim depois que eu falei em "Jude". Estranho, muito estranho: ninguém é indiferente a "Bette Davies".


Trocamos poucas palavras. Ela estava esperando para pagar um pacotinho com sementes. E refrigerante sabor limão. Me contou sobre sua idéia repentina de plantar flores, enfeitar sua janela. Não parecia ser do tipo que come alface e ama os animais. Me deixou em silêncio, observando novamente suas costas. E eu já não sabia a qual música teria de recorrer para ganhar sua atenção novamente.


"Samantha", "Julia", "Caroline", "Sara", "Polly", "Helena"... tudo em vão. De repente, ela se virou. Sobrancelha erguida. Mascava furiosamente o chiclete. Tudo isso faria sentido se a reação anterior não tivesse existido. Eu disse "Jude?!" com um sorriso nervoso, mas ela olhou para baixo e sacudiu a cabeça num sinal de "não". Parecia irritada com o meu não-entendimento dos fatos, e eu já estava me incomodando com aquela pressão para que eu decifrasse a mensagem.


Cabelos castanhos despenteados. Camisa xadrez verde, cinza e azul-marinho. Chiclete de menta. Chave pendurada no pescoço. Olhos pequenos e claros. Calça comprida e tênis com merda. Do tipo que adora cachorros, mas não sabe controlá-los no parque - e sempre arranja confusão com famílias que fazem piquenique.


Eu disse "Eu sei que fui eu quem começou com tudo isso, mas eu não entendo.", encarando os olhos grandes com os meus pequenos. Ela pegou da cesta que eu carregava a lata de extrato de tomate e o pacote de massa, e apertou cada um deles contra suas bochechas, num bizarro gesto amoroso.


Pagamos as compras e fomos cozinhar massa com molho e plantar flores. O que combinava com o "Hey" de "Hey, Jude" era o "Hey" de "Hey, Paul" e, em função disso, decidimos nos chamar por esses nomes fictícios e deixar de lado nossas verdadeiras identidades.


Acabei limpando a merda dos tênis na grama de um dos vizinhos de Jude, ainda no caminho para sua casa. Ouvi a história dos machucados dos joelhos dela e pensei em presenteá-la com joelheiras quando tivesse oportunidade. Só me enganei quando inferi seu gosto por alface: ela tinha uma plantação delas. 



 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

(sem sentido)


E eu poderia ter dito "Quer merda, John! Você fudeu com tudo!", mas dizer "John" no Brasil parece forçado, e dizer que o tal John teria realmente fudido com tudo seria mentira. Então, por um tempo, eu esqueci que estava no Brasil e procurei fingir que desconhecia as porcentagens de responsabilidades entregues a cada pessoa envolvida (50% pra cada um, afinal éramos apenas dois). Eu disse "Porra, John, você sempre fode com tudo!", o que era mais mentira ainda. Quando algo chega ao ponto de ser 'mais mentira ainda', é sinal de que perdemos a cabeça. Totalmente. Sem voltar atrás. E o John me olhou assustado, mas daquele jeito convicto. Ele sabia que ele estava certo. Mais do que isso: ele sabia que ele estava certo e que eu estava errada. Completamente errada. 100% errada. Ele deu um passo largo para trás, e ficou me olhando com uma expressão séria. Não era parecida com a cara de um pai quando está irritado com o filho, nem aquele tipo de seriedade que pode facilmente ser amenizada e seguida de um movimento engraçadinho de sobrancelhas: quando eu digo séria, eu digo realmente séria. E ela não mudaria por nada, eu achei. E pensei "Putz, Lia, você sempre fode com tudo!". Meu nome não é Lia, mas juro que no momento eu me autonomeei assim. Acho que a vergonha foi tanta que eu queria fugir dali e o máximo que eu consegui foi tentar mudar de identidade, mesmo que isso servisse de escudo invisível que não dura mais de doze segundos. E, no final, foi só isso: uma dessas atitutes que a gente tem por impulsividade, impulsividade pura. E se arrepende depois. Mas aí já era tarde: eu já tinha fudido com tudo. É o que acontece quando a gente está convicto demais de que pode ser uma Lia. Ou não.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Estilo "Let it be".

          E a gente fez aquela coisa de sentar onde der e ficar por isso mesmo. Eu nem lembro qual era o assunto, mas sei que não ficou aquela coisa de "Veja como o céu está estrelado!". Quando a gente não se importa muito com o que está ao redor, parece que ele incomoda menos: a grama não pinica, o clima fica mais agradável, o vento não é exagerado nem insuficiente.
          Eu fiquei pensando no que dizer e, ao mesmo tempo, eu não estava preocupada com o que eu diria exatamente, mas em estar ali. Dizendo besteira, dizendo o que fosse, ou não dizendo nada. A gente sempre tinha assunto, talvez até demais. Isso é reconfortante, parece ser tão ideal. E, então, o meu não saber o que dizer deixava de brilhar na minha mente: talvez o que eu não soubesse fosse o meu lugar naquilo. O meu lugar em tudo. E o não saber o que dizer deixava transparecer as reticências que me preenchiam.
          Até que eu disse "Hey, eu não sei o que dizer.", e isso foi tão porcamente sincero e não mostrou nada do que eu queria mostrar. Por trás das palavras que eu não sabia escolher, existia uma mensagem que insistia em ser pronunciada. Mas, antes das sílabas se encaixarem, eu precisava ter certeza de pelo menos alguma coisa naquela realidade tão cinematográfica.
          E sei lá quanto tempo se passou. Não farei suspense para concluir que eu não disse nada. Não disse, não disse nada do que talvez eu quisesse dizer. Mas tem coisas que parecem nos enganar: querem pular do coração para a boca, sem passar pela cabeça. Os pés têm que estar no chão - ao menos eles precisam estar a salvo... ao menos eles...
          O mais legal de tudo é que não foi uma cena romântica. Foi descontraída o bastante para poder se repetir involuntariamente quantas vezes fossem, sem se tornar clichê. E a gente fez aquela coisa de caminhar de um lado pro outro e não se encontrar. Parecia que existia uma barreira plástica que nos impedia de estar completamente no mesmo lugar - mas isso só causava mais interesse, mais curiosidade. E, por vezes, essa parede invisível filtrava algumas imperfeições. "Imperfeições... Imperfeições... Imperfeições não existem!", eu comecei a pensar. Acho que ele sempre teve acesso ao meu lado mais ou menos de ser. E talvez eu quisesse mostrar meu lado mais legal, digo realmente me esforçar.
          Para algumas pessoas vale a pena fazer algum esforço. Fato. E, de repente, foi o que ele fez também quando me poupou de elogios rotineiros, desses que qualquer um faz para qualquer uma. É engraçado pensar que talvez ele também estivesse lutando com as palavras, ou que desconhecesse seu papel em tudo. E acho estranho como eu me importo sem sofrer: de onde vem essa segurança e para onde ela vai? Às vezes, o que basta mesmo não é dizer a frase certa, mas estar presente. De corpo e alma, pés, mãos e boca. Estilo "Lei it be".




terça-feira, 6 de outubro de 2009

Gold Soundz

Ele parou o carro no posto de gasolina. Deixou o cara do posto enchendo o tanque e entrou na lojinha para comprar chicletes e coca-cola. Quando ele começou a se aproximar, eu fechei a janela do carro - deixei que o vidro escuro me deixasse quase invisível. Eu me sentia melhor assim, gostava de observá-lo sem que ele percebesse. Voltou com duas cervejas, os chicletes, a coca e uns três pacotes de bolacha. Pegou a chave com o cara e, uns segundos depois, estávamos de volta no asfalto. Durante a viagem, ouvíamos qualquer coisa. Digo isso porque nosso gosto era mesmo parecido. Músicas, livros, filmes e todas essas coisas que parecem dar mais sentido e personalidade às pessoas. Não exatamente tão clichê. A pretensão não era voltada para uma tentativa de fazer nascer qualquer porcaria de sentimento, apenas existia a intenção de aproveitar os acontecimentos. Se temos que viajar, que seja legal. Se queremos viajar, e queremos ir juntos, ok. Simplesmente ok. Estrada, noite, vento e música - nada errado. Eu sempre gostei de ficar olhando para o cabelo dos outros, mas, com ele, minha atenção sempre se voltava para sua barba enigmática. Eu falo isso porque nunca soube se ela era como era propositalmente ou por preguiça, acidente, qualquer outro motivo aleatório. Eu gosto de coisas inusitadas, e barba por fazer, e pessoas que se vestem bem porque realmente combinam com o que vestem (e não, necessariamente, porque combinam as peças ou coisa que o valha). Ele dirigia com uma mão na direção, falando besteira atrás de besteira. E como eu adoro besteira! O fato é que eu ri muito durante a merda da viagem. Aquelas seis horas passaram muito, muito rápido. Devo ter ouvido os melhores cd's do mundo e dito todas as coisas que me passaram pela cabeça. E, quando ele falava, eu ficava olhando a boca dele se mexendo. E pensando na barba, na maldita barba. E em todo aquele cabelo, que eu não hesitaria em bagunçar. Acho que uma das minhas marcas é despentear as pessoas. Tipo isso. E ele falava e abria tanto a boca, como se fosse comer o mundo com as palavras. E eu achava graça, eu sempre achei graça. Do lado dele, eu me sentia como uma música dos Pixies, um clipe de Killers, sei lá. Lost in Translation com o humor de Skins. Whatever. O fato é que madrugada combina com humor porco, e revelações, e todas as coisas sinceras e longe de serem avaliadas como certas ou erradas. Certos segredos só se vivem com estranhos. E é legal ter do seu lado uma pessoa de barba enigmática - ajuda a manter o ar impessoal. Eu me enrolei num casaco, encostei a testa no vidro e fiquei vendo as árvores se tornarem borrões no escuro. Sempre me pergunto o que eu faria exatamente se, do nada, estivesse do lado de fora do carro no meio do caminho entre uma cidade desconhecida e outra-que-sei-lá-qual-é. Ele me contou sobre suas férias de seis anos atrás, sobre sua relação com sua irmã, enumerou os defeitos da antiga escola e fez umas trocentas listas sobre todos os álbuns que eu tinha que ouvir. E me falou dos amigos, de como aprendeu a tocar baixo e todas aquelas histórias que eu gostava de ouvir repetidas vezes - apesar de ele raramente repetir alguma. Sempre tinha algo novo pra contar, uma nova porcaria que algum infeliz tinha feito. Eu gostava de fazer parte daquilo, gostava de estar ali comentando tudo abertamente. Trocávamos xingamentos e depois ele sempre me abraçava daquele jeito diferente. Grosseiro e afetuoso. E extremamente "dócil". Dócil é uma palavra estranha, mas se encaixa nessa situação. Por vezes, sentia vergonha por alguma grande merda que eu dizia. Daí, ele olhava pra mim com aquela cara de indiferença e dizia que eu tinha que agir assim mesmo. Grande merda mesmo. E, realmente, grande merda. Acho que as boas coisas realmente nascem daí, dessa espontaneidade, desse "eu sou assim mesmo" - que torna os erros apenas enganos passageiros (e pronto). Tudo é mais simples se é espontâneo, se ocorre naturalmente. Tudo cru. Cru. Cru é uma boa palavra, e é do tipo que ninguém fala ou escuta com muita freqüência - a não ser quem trabalha em uma cozinha. E eu sei lá se ele sabe cozinhar. Sei que a gente come qualquer coisa, como escuta qualquer coisa. Qualquer coisa, menos pastel de palmito com massa integral. Sabe, se eu for pensar bem, ele é organizadamente desajeitado. E eu adoro isso. Adoro pessoas que não parecem perfeitas e acabam se passando por isso justamente por serem exatamente como são. A gente dividiu a coca, acabou com os chicletes e se divertiu cantando rap e falando mal de quase todo mundo. Isso era uma coisa que eu admirava nele, esse "quase". A linha tênue entre o fazer ou não, que acabava silenciada no não. O silêncio, o silêncio dele era outra coisa que me intrigava. E, quando vencíamos a distância, e a barba se aproximava do meu rosto, eram seus olhos inusitados que me roubavam a atenção. E eu gosto de como grande parte da história é besteira, grande parte se resume em barba e cabelos e roupas. Nem só de subjetividade vive uma pessoa. O que é externo e visível importa, importa porque também agrada. E desagrada. E eu não sei se agrado. O fato é que eu continuo fechando a janela toda vez que ele se aproxima, numa tentativa de me esconder e poder observá-lo à vontade, livre da minha identidade e da responsabilidade de ser eu. Tem pessoas que me agradam tanto que, nem sei, me fazem querer estar por perto, mas escondida. Não seria insegurança. Talvez eu seja desajustada também. E grosseira, às vezes. Tanto faz, ele não se importa com essas porcarias. Ele é desses caras que fazem a gente ser a gente, defeituosamente a gente. E do jeito bom e lindo também.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Rainy Date

Eu fiquei parada no cordão da calçada, assistindo as rodas dos carros arremessarem água em mim. Não é que eu fosse de todo indiferente, mas eu realmente não estava vivendo a situação: meus pensamentos são aleatórios e constantemente me tiram da realidade. Não estava indecisa quanto a ir ou vir, correr para o outro lado ou voltar para lugar nenhum - estava mesmo era perdida nesse vão que existe entre o desejo e a busca. Certas buscas são inúteis. Inúteis, inúteis como são certos desejos. Mesmo que sejam desejos, sem a pretensão de serem mais do que desejos: desejos são feitos para os querermos e nada mais. São só desejos. E eu fiquei ali, na chuva, desejando o indesejável, contrariada com minhas próprias motivações.

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A noite passada foi uma merda, uma merda de noite. Não dormi, não comi, mal respirei. E detesto quando acordo e o dia não parece dia novo, não tem cara de que houve mudança. Saí de casa com a expressão mais azeda no rosto, com meu olhar mais desprezível, com os tênis desamarrados - como se simbolizassem minha revolta, minha autoafirmação. E todos na rua pareciam beges e verdinhos e ensolarados apesar do dia ser chuvoso. Não peguei guarda-chuva, porque eu não uso um: não gosto de fingir que eu me sinto seco quando tudo ao meu redor está molhado e frio. Eu tenho essa mania de acabar parecido com o cenário, de absorver as cores e de agir como a situação pede - sem anestesia.

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Ela vestia seu sorriso mais cinza, ele tragava seu humor mais impaciente. Se esbarraram no meio do asfalto, caminhando esbaforidos em sentidos contrários - o desejo e o não-anestésico. Alguns olhos conseguem ver além das aparências, algumas palavras conseguem traduzir o que os sentidos reproduzem mas, na cena, nenhum dos dois jovens viu no outro um pedaço de espelho. "A chuva lava, mas também afasta, muda as coisas de lugar". E o momento do encontro duraria menos se uma ponta de cadarço não tivesse sido alvo de um dos pés pequenos que desviava das poças do caminho: a garota não era do tipo bege ou verdinha, menos ainda parecia se importar de estar molhada - bem como o rapaz não parecia estar tão presente assim naquele instante. Não significaram nada um para o outro, mas estavam sob a mesma nuvem. Estranhos sob a mesma nuvem. E talvez nem fossem tão diferentes assim.




domingo, 21 de junho de 2009

gris.


A música começou a tocar e me deu aquela crise de nervosismo. Pra ser sincera, eu não esperava que ele fosse se levantar. Eu queria que ele deixasse aquela mesa e se aproximasse da minha, mas não achei que isso fosse acontecer tão no início da noite. O mais estranho é que, ao mesmo tempo em que eu fiquei eufórica, pensamentos superperturbadores me invadiram. Sabe, eu não queria dançar. Eu não sabia dançar. Dançaria se fosse com ele, mas, pelo mesmo motivo, eu não arriscaria colocar meus pés na pista. Se ele passasse reto por mim seria decepcionante, mas, se estendesse aquela mão bonita daquele modo clássico e brega, também seria desconfortável. Coitado, ele tinha tudo para me fazer feliz. Feliz e infeliz, porque eu nunca me dava por satisfeita.

Ele cumprimentou um conhecido dele que estava sentado quase à minha frente e então fez aquela coisa de subir a sobrancelha e fazer um aceno com a cabeça, num gesto quase imperativo que fez eu me levantar instantaneamente. A gente pegou dois copos e passou reto pelos casais que dançavam. Me disseram que nós ficávamos bonitinhos juntos e, de fato, dançando ou não éramos um belo par. Não que nós fôssemos dignos que ganhar coroas e título de rei e rainha do baile, essas coisas de filme, mas realmente nos dávamos bem. Realmente. E eu gostei de ter debruçado meus braços no parapeito da sacada e sentido um pouco daquela chuva na pele. Ele era uma boa companhia para dias e momentos cinzas. E festas, para mim, tendem a ter essa cor.

Nós ficamos conversando, conversando como pessoas que se gostavam. Isso engloba amizade e um pouco de ciúme talvez - ainda que não se note exatamente isso em uma conversa. Sempre achei engraçado que, desde o início, mantínhamos uma relação internalizada, ao contrário do que se vê por aí. E, apesar de falar muito sobre muita coisa, eu sentia que ainda teria muito por vir. Muito o que falar, o que ouvir e o que sentir. Ele era dessas "pessoas que te fazem sentir", como dizia uma propaganda de seriados da tevê. Acho que não conheço, hoje, outro exemplo para citar. Mesmo quando ficávamos em silêncio, não era de todo mal: ele me causava aquela mistura de emoções e pensamentos e, por menos próximos que fôssemos um do outro, eu sentia que naquela distância que nos separava existia uma grande razão.

Eu não sei se queria mesmo dançar ou se era só o desejo de me sentir tão bem quanto os outros pareciam se sentir. Sempre achei isso uma grande bobagem e evitei que essa preocupação tomasse grandes proporções, mas, naquele segundo, essa dúvida me incomodou. Uma música antiga atrás da outra, luzes discretamente coloridas e sorrisos bonitinhos: aquele ambiente algodão-doce nunca me parecera tão atrativo. E peguei a mesma mão bonita que não fizera o gesto de cavalheiro para mim e a segurei na altura dos meus olhos. Então, deixei que ela se acomodasse onde antes estava, pensando em como justificaria aquele gesto impulsivo. Ele passou os dedos no meu rosto carinhosamente, como fazia às vezes, e nada disse. Nós ficamos nos olhando por um tempo, até que fomos interrompidos pela risada escrota de uma garota bêbada que tinha escorregado nas lajotas molhadas.

Tanto faz, nós não ficaríamos muito tempo juntos. Ele saiu mais cedo com uns dois amigos para beber em algum lugar, mas agradeceu minha companhia. Eu também me senti grata pelas palavras trocadas e por todo aquele bem-estar. E, por mais ingênua que fosse, eu ficava alegre em saber que produzia algum bom efeito em alguém que, pra mim, era especial. Meu medo era de fazer com que ele se acostumasse a me ter sem que eu pudesse acessá-lo do mesmo modo - ou, talvez, meu medo se resumisse em não estar mais com ele. Mesmo que nós só "estivéssemos" nesse tipo de situação em que você se aproxima de alguém ímpar quando tudo a sua volta é par. Tem vezes em que é mais importante dançar, independente da companhia - mas essa parte eu não sabia fazer. Talvez ele precisasse de alguém que o estimulasse, que o fizesse se sentir como todo mundo que mantinha aquele sorriso bobo no rosto. Mais provável, porém, é pensar que ele não precisava de nada, de ninguém. E tudo o que eu tinha que fazer era fingir muito bem que eu não me importava.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A Espera.

Você chega no shopping, senta na mesma cadeira de sempre, apóia seus cotovelos na mesma mesa de sempre, consulta o relógio. Restam, ainda, doze minutos de espera. Você suspira, passa a mão nos cabelos, olha aflito para os lados. Pode ser que ela já tenha chegado, não? Não, você sabe que não. Logo ela, sempre tão vaidosa... nunca chegaria cedo em um encontro marcado tão às pressas.

Passam-se vinte e três minutos, vinte e quatro, uma hora. Os ponteiros insistem em te deixar ansioso. Sua intuição avisa que algo está errado. Sua tensão o confirma por si só. Você checa seu celular, procura uma mensagem ou uma chamada que não está ali – afinal, ninguém ligou. Seus olhos passeiam pelo universo à sua volta... são crianças, velhos, jovens... os mais diferentes tipos de pessoa circulam pelo lugar. Todos desnecessários: você queria apenas ela.

Seguem, então, sua expectativa e suas frustrações, que só se acumulam com o passar do tempo. Ninguém atende ao telefone, ninguém parece vir ao seu encontro. Você então se levanta, mas retorna à velha cadeira, com medo de que ela chegue justo quando você não está ali. Ou então teme que um estranho ocupe seu lugar... isso já acontecera antes, mas em outras circunstâncias, você se lembra? Sim, você relembra coisas que achava ter esquecido. E o medo invade seus pensamentos.

Impulsivamente, você caminha até a lanchonete mais próxima. Compra um refrigerante qualquer e volta a bater os dedos freneticamente na mesma mesa. Você tenta se distrair, mas a lata já está vazia sem que você tenha percebido. Sua atenção corre de pessoa para pessoa e, a cada novo andarilho que cruza seu olhar, uma nova esperança surge. Você confere o relógio uma última vez, num misto de insatisfação – tristeza - e raiva.

Você fecha os olhos por um instante, mergulhando assim numa deliciosa sensação de perda. Sim, você está sozinho agora. A ausência da moça confirmou que tudo acabou – sem nem mesmo ter a chance de se estruturar. Você empurra a lata à sua frente, que bate na mesa provocando um baque surdo. Mais uma vez você está em pé, agora decidido a ir embora. Você dá um, dois, três passos amargurados - e, no terceiro, avista-a descendo as escadas apressada. Em sua face se projeta um sorriso e, como você vê, toda a espera não foi em vão.

Eu sou a garota da mesa ao lado que, enquanto brinca com outra latinha vazia, se diverte adivinhando seus pensamentos.

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Eu usava em resposta ao "quem sou eu", no Orkut, há uns dois anos atrás.

(sem título) - 28.01.2007

sexta-feira, 22 de maio de 2009

us.used

____Ainda não era noite quando ele bateu a porta da casa. Saiu andando com as mãos nos bolsos do sobretudo, franzindo a testa para o vento carregado de folhas secas. Os cabelos curtos e pretos ficaram bagunçados e ele já nem lembrava quais eram seus planos para aquela hora. Caminhou por cerca de seis quadras ainda se perguntando suas motivações.
_____Certa movimentação naquela rua pacata chamou sua atenção: uma casa branca, de paredes rústicas - luzes acesas e barulho. Tocou a campainha sem pensar e, apesar de ficar surpreso com a rapidez com que a maçaneta girou, não deu sequer um passo para trás.
_____"Oi." Não reconheceu a garota no primeiro instante, mas logo que parou de sonhar acordado e fixou os pés no chão se deu conta de que talvez não fosse o melhor endereço para se estar. "Ah, oi." Olhou para o interior da casa, onde um grupo de cerca de sete pessoas parecia entretido entre copos, garrafas e almofadas.
_____"Hnm. O que você quer?" "Eu? Não, nada." Sentiu-se um verdadeiro idiota por estar ali. As pessoas que se divertiam na sala nunca foram agradáveis - isso não seria diferente agora que ele não passava de um ex-namorado de uma amiga delas. "Sabe, talvez você não queira acreditar nisso, mas eu saí de casa sem um propósito e vim parar aqui."
_____"É, isso é estranho. O que foi isso? ...Saudade?" "Não, não! Ah, desculpa, mas não... Sabe de uma coisa? Eu não te disse isso quando deveria, mas eu quero que você seja feliz. Feliz de verdade, entende? E, mesmo com todas aquelas coisas que a gente disse um pro outro... mesmo eu tendo gritado e você... enfim, mesmo depois de tudo que a gente fez, eu acho que você é uma garota legal e eu realmente espero que você encontre alguém que possa te fazer feliz."
_____"Ah... ok. Senti tua falta, sabia?" "Não, não sabia. Mas também não quero saber. Você foi importante pra mim e nunca vai deixar de ser. Eu me importo e é só." Ele virou as costas, passou o dorso da mão direita na testa e repousou um dedo sobre o queixo. Seu tchau se resumiu a um olhar abandonado para a casa, onde, na porta, estava uma garota encolhida, abraçando o próprio corpo e observando o único andarilho daquela rua se afastar.
_____Não dissera uma mentira: não pensava em enfrentar o frio da cidade para reencontrar rostos há muito não vistos. Por dias se perguntou sobre o real estado da garota da casa. Melhor estar com aqueles indivíduos do que completamente sozinha... Não sentia sua falta, nem desejava sua companhia. Continuou andando sem destino, se revoltando com a falta de inocência que qualquer um teria sobre sua última atitude impensada: que mal há em ser sincero?
_____Quando chegou em casa, avistou uma folha de papel que fora deixada em frente à porta, sob uma pedra de jardim. As palavras foram selecionadas com tal cuidado que a mensagem deixou de ser natural. Preferia ter recebido uma visita patética, tal como foi a sua. Conversar, recordar um sorriso ou uns olhos brilhantes. Reconheceu que aquele fora o jeito da garota de se expressar. Talvez isso mostrasse o quão diferentes eram. Ou, talvez, apenas significasse que nem sempre se mostrar indiferente é o que se quer.




quarta-feira, 13 de maio de 2009

1/3

- Não quero, sabe? Não quero ser como essas pessoas que passam um terço da vida dormindo e outro terço acordadas.
- Um terço acordadas? Você se enganou, querid...
- Não, é um terço mesmo. Um terço do tempo acordadas. Sabe, a gente tende a viver de olhos fechados, seguindo uma rotina mecânica de coisas que deixamos nos impor - para manter a ordem, eu sei -, e deixamos de lado o que, no fundo, realmente conta para a nossa felicidade.
- Eu acho que esse tipo de pensamento só faz com que nos sintamos diferentes em relação ao todo. Isso nem sempre é bom.
- Nem sempre é bom, mas é o preço. Sabe, falar sem parar por exemplo: as pessoas estão acostumadas a regrar tudo, a fazer caretas e a achar esquisita qualquer conversa que seja realmente espontânea, entende?
- Mas o fluxo de pensamentos da sua cabeça é diferente do de outras pessoas. Se não existir uma convenção, ninguém nunca vai se entender.
- Não, não! Eu quero dizer que, se eu parasse aquele cara que está atravessando a rua para elogiar seu corte de cabelo e perguntar o que ele achou daquele escândalo dos dejetos encontrados em caixas de leite, provavelmente ele me acharia uma pessoa esquisita e inconveniente - quando deveria se manter neutro e responder, se estivesse afim.
- Você acha que ele não o faria? Sabe, se todos tivessem esses ímpetos de falar o que desse na telha o mundo não seria mais tão sério. Eu tô falando de seriedade, sabe, de responsabilidade. É muita inocência achar que as pessoas seriam mais felizes com esses diálogos randômicos esquisitos.
- Mas nós, por exemplo, vivemos tendo esses diálogos e sabemos o quanto são bons!
- Mas nós somos nós. Nós não dormimos um terço da nossa vida, estamos o tempo todo acordados pra tudo... é por isso que nos damos bem. Eu, sinceramente, não queria perder isso para essas pessoas que nem se importam.
- É, pode ser. Pretensão demais, né?
- Acho que, se eles estão satisfeitos, melhor pra eles. Teria um certo incômodo se tudo o que eu gostasse fizesse parte do gosto comum.
- Depois eu que tenho mania de ser diferente...
- Não é mania de oposição, de chamar a atenção, essas coisas... só não gosto de dividir o banco com gente que não pensa, que só aceita tudo sem nem ter uma opinião a respeito. Seja um comodista, mas com consentimento!
- Engraçado te ver falando assim. Nunca sei que assunto vai te empolgar ou te deixar com aspecto de mofo.
- Isso é de todo mau?
- Não, não é mau. Eu quero dizer que gosto que você não seja previsível aos meus olhos. Eu fiquei pensando a respeito da "pessoa perfeita" e cheguei a conclusão de que a minha versão disso seria alguém com defeitos. Porque, pra mim, pessoas sem defeitos são plásticas - nem perfeitas são!
- Eu gosto de pessoas de verdade...
- Sim, é isso. Eu gosto desses dois lados, acho rico poder ser uma grande pessoa por um lado e um pouco desprezível por outro. Acho legal assumir características que não nos remetem ao sucesso do bem-estar coletivo...
- Ah, é que o pecado se estabeleceu em tudo... Depois que a idéia de culpa surgiu, nunca mais fomos os mesmos. Sentimos culpa quando não sentimos culpa por fazer algo "errado", por exemplo. Isso é ridículo.
- Eu não sei o mal que existe por trás da nossa imperfeição. Isso assusta tanto as pessoas... elas ficam mentindo umas pras outras para se mostrarem melhores, sendo que isso é ainda pior do que fazer uma propaganda negativa de si mesmo.
- É, eu também não entendo isso. E também acho curiosa nossa mania de gastar um terço do tempo nos perguntando como os outros não são como nós.
- Mas isso me faz feliz, entende? Não falo isso pensando em inconseqüências da adolescência, mas acredito que esse "um terço" (dois, na verdade) deveria ser para a gente se divertir, procurar diversão nas coisas que nos são oferecidas.
- É, isso não me aborrece. Eu gosto da maneira como eu admistro meu tempo, principalmente como isso tem se dado nas últimas semanas...
- É. Ok, posso dar play? Você já buscou o saleiro, agora podemos retornar ao filme.
- Sim, claro. Ah, só uma última coisa: eu gosto de como a gente demora umas cinco horas para conseguir fazer alguma coisa que já estava programada. Eu quero dizer... é espontâneo. Fico feliz em ver que não somos mecânicos e conversamos quando temos vontade.
- Pois sim. Ah, já te mostrei o livro que eu comprei?
(...)


sábado, 2 de maio de 2009

Dress

- Quer que eu o tire da manequim para você prová-lo? - A lojista pareceu surgir do ar - do invisível - sorridente e perfumada. Emily, que estava parada na porta da loja, de frente para o vestido, assustou-se com a quebra do silêncio, mas não despertou do seu momento de fantasia.
- Ahm? Não... - Deixou cair parte da mostarda do hamburger sobre a bolsa de lona que trazia à tiracolo. A moça uniformizada ofereceu um guardanapo e rapidamente buscou uma garrafinha de água mineral. Emily lambeu os dedos engordurados, terminando de comer seu almoço. Deixou-se encant
ar pelo vestido da vitrine. - É, eu quero experimentar... o vestido...
- Ele é lindo, não? Por favor, deixe suas coisas em cima do pufe! - Emily procurou uma lata de lixo em que pudesse atirar o papel sujo que envolveu o sanduíche. Acabou tendo que pedir que outra funcionária o fizesse. Cruzou os dedos e traçou seus passos em direção ao provador.
Pareceu infinitamente longa a tarefa de tirar a roupa e vestir aquela peça única. Tão branco. Tão puro e branco. Nunca tinha visto o branco com tanto interesse. Uma perna depois da outra, um pouco de alongamento para puxar completamente o zíper e eis que Emily se transformara numa noiva. Numa noiva descabelada, era fato, que mordia os lábios inferiores
e alisava os braços.
Virou de costas para o espelho, levantou os cabelos de forma a deixar nus ombros e nuca. Enxergou uma imagem que desconhecia, uma seriedade por detrás daquela brincadeira. "Vou casar de All-Star", pensou. E, em segundos, se deu conta do erro da frase. A idéia de criar laços eternos não parecia tão tensa - pelo contrário, se insinuava tão naturalmente... Engoliu em seco e virou-se de frente para seu reflexo. Olhou para seus pés pequenos e afastados, levantando a volumosa e pesada saia do vestido. "Sabe, até que eu daria um merengue bem bonito". Poderia e até gostaria da idéia de ter uma roupa como aquela.
Saiu do provador com um sorriso mudo, com uma felicidade triste: faltava o noivo para colocar em cima do bolo. O que, de fato, não era de todo mal: teria mais tempo para se preparar psicologicamente. Emocionalmente. Mais tempo para entender que pessoas sozinhas não conseguem suprir seu vazio interior, mais tempo para encontrar a música ideal, mais tempo para... Mais tempo.
Emily, que sempre passava por essas lojas de vestidos de noiva comendo um cachorro-quente ou algo que o valha, agora não se importava em tentar reprimir sua curiosidade. "Eu sou pra casar". E, de fato, todos são. Todos são...


sexta-feira, 1 de maio de 2009

"Vontade das coisas."

- E essa ferida na boca?
- Eu me machuquei com papel-alumínio... fiquei mordendo um pedaço... uma hora ele escapou e eu acabei mordendo meu lábio.
- Hum. Que ruim, ein. Mas por que raios te deu essa vontade de comer papel-alumínio?
- Não distorça as coisas, eu não queria comê-lo... Enfim, foi vontade. Só vontade, sabe do que eu falo? Vontade das coisas.
- Vontade das coisas? Haha, você é tão engraçado. Que coisa de louco... comer papel-alumínio...
- Eu não vejo graça. Mas tudo bem.

- Ai, melhora essa cara. Que cara de bunda! O tempo todo é isso...
- Não é "cara de bunda", é só minha cara. Minha cara ao natural, sem esbanjar emoções.
- Mas assim é feio, você poderia ser mais simpático que isso...
- Eu poderia muitas coisas. Eu não tenho que fingir estar alegre.
- Fingir estar alegre? Vai me dizer que eu te deixo infeliz agora?
- Não, que pensamento mais... repulsivo. Não misture as coisas.
- Você tá sempre de cara amarrada, parece que não pode estar feliz comigo.
- Se você me deixar em paz talvez eu até consiga...
- Eu não acredito no que eu estou ouvindo! Quer dizer então que...?
- Não, não! Ah... fica quieta. Olha, te trouxe os pães que você pediu.
O troco ficou com o cara do mercadinho, ele disse que você está devendo umas coisas...
- Ah, aquele mala! Eu disse que pagaria na sexta-feira.
- Que seja. Eu vou embora, depois você se entende com ele.
- Vai embora? Pensei que você fosse querer ficar pra janta, ver um filminho...
- Não tente me seduzir. Sabe, eu não estou com vontade.
- Não está com vontade?
- Com vontade de você. Não estou.
- Eu juro que pensei que você fosse um cara legal, sabe... quando a gente se conheceu você parecia tão melhor.
- Eu parecia tão melhor porque era o amigo do seu irmão mais velho. Isso sempre é meio afrodisíaco.
- Não, claro que não...
- Que seja. Mas você gostou de mim de cara por causa dessa idéia. Eu
o tenho nada a ver com seu relacionamento com seu irmão, mas acho irritante sua mania de querer aparecer.
- Nossa, eu te dou a chave do meu apartamento e você me diz isso?
- Olha só, nós somos vizinhos. E eu te respeito, inclusive por consideração ao teu irmão.
- Mas...?
- Mas não quero. Não sinto vontade. A minha "cara de bunda" mostra isso, mostra que eu não sinto nada.
- Que coisa mais idiota. Eu não acredito que eu estou aqui parada com minha melhor calcinha para ouvir você me negando com uma explicação-merda dessas...
- Eu me sentiria constrangido só de estar "com minha melhor calcinha" e usando isso de apelo. Sabe, eu não vou te achar mais legal se eu ver sua bunda. Na verdade, seu comportamento todo é deprimente. Se eu fosse você morreria de vergonha e nem esperaria explicação nenhuma da minha parte
.
- Que absurdo! ...Que absurdo, sério. Que abuso...
- Por favor, coloca uma calça e desliga esse rádio. Durma um pouco e se sentirá melhor.
- Me dá aqui essa chave! Você está proibido de entrar aqui, ouviu?
- Ok.
- Sério, por que essa cara? Não era pra você ficar alegre...
- Por favor, faça o que eu disse. A gente não se entende, não adianta. Eu não conto nada pro teu irmão, nem esquenta a cabeça com isso. Só fica longe de mim, sabe. Me deprimo quando você aparece no meu apartamento.
- Você fica o tempo todo sozinho, eu quero te fazer companhia!
- Não, você tenta... você só tenta me fazer companhia. Eu sou sozinho
, é diferente. Você também é sozinha, mas suas amigas-cor-de-rosa disfarçam isso.
- Ai, sai daqui. Não suporto esse baixo-astral!
- Ok.
- Que merda, fala outra coisa! Eu não acredito que você está fazendo isso... Sabe, o dia que você resolver olhar pra mim eu vou estar com um cara muito melhor do que você.
- O seu conceito de "melhor" é semelhante ao que eu considero algo "ruim". "Suficientemente ruim", sabe? Sem cerimônia. Então, não vejo grande dificuldade em te tirar do seu cara perfeito, caso um dia eu tenha essa vontade.
- Vontade, vontade... isso é tão vazio, tão momentâneo.
- Eu sou vazio, sou temporário. Eu não sou essa "cara de bunda" que você acha bonitinha.
- Que merda, que merda! Que vergonha!

- Eu vou deixar você se vestir. De preferência, arranje outro alguém para te comprar os pães, ok? Não ando com muita vontade. Quando eu digo que não me importo em fazer esses favores é porque eu sinto que tenho que ser um pouco responsável por ti.
- Por causa do meu irmão?
- Também.
- Que merda.
- Pega sua chave. Eu não volto mais aqui, não essa semana.
- Mas volta outro dia? Volta?
- Se eu voltar, trarei um cd. Mas eu não tenho vontade de você, não se iluda
.



segunda-feira, 13 de abril de 2009

Outono cinza-blue.

Eu resolvi que não caminharia em linha reta, indiferente àquela curva. Estava numa estradinha de areia, que traçava destino sobre aquela imensidão verde-grama. Eu segui toda a inclinação, passando um pé pela frente do outro, de forma lenta e compassada. A música que eu estava ouvindo me fez pensar em outros rostos, outros cabelos de inverno. Quando a noite é fria, os fios de cabelo ficam gélidos e as pessoas falam pouco, esbaforidas por entre as voltas dos cachecóis nos pescoços. Tudo fica tão deliciosamente cinza-blue no inverno. Os outonos são mais alaranjados, mais beges, mais marrons: ainda arriscam certa alegria. E não é que o inverno seja de todo triste, mas aquela curva no chão, sinuosa e brincalhona, só poderia ser de outono. Eu decidi obedecer a faixa para ver se eu me sentia como outra pessoa. Outra pessoa qualquer, sabe, qualquer coisa que não fosse eu. A gente deveria poder tirar férias de nós mesmos às vezes. Não ficaria indiferente, pelo menos: acho que foi isso que eu me tornei. Chocolate quente é bom, chá é bom, café é bom... mas já não sinto aquela vontade de tomar alguma coisa. Eu gosto de quando a noite se impõe sobre a luz, gosto de como, pelo menos na natureza, existe respeito. Sabe, eu liguei hoje de manhã para um sujeito e ele bateu o telefone no gancho. Isso é coisa que não se faz! Desde então, com esse ótimo acontecimento - próprio para dar início a uma manhã feliz -, comecei a pensar em como seria bom assumir outra identidade. Quem sabe mudar o corte de cabelo, comprar uma jaqueta... não, essas mudanças externas não funcionam comigo. O problema de estar em constante mudança interna é que quem está ao seu redor não tem exatamente uma noção do que está acontecendo na sua vida. Pensando bem, isso não é um problema: serve até de proteção. Eu segui a curva do caminho e olhei para os lados e para trás, em busca de qualquer alma que parecesse consentir o que eu fiz. Sabe, eu precisava de um desses sorrisos que não dizem nada, desses que as pessoas fazem quando encontram, na rua, algum semblante conhecido e desconhecem sua origem. Eu precisava, na verdade, de qualquer coisa que me oferecessem. Um abraço, um pastel, um convite para jogar damas... qualquer coisa que deixasse meu outono menos invernal. Mas eu cruzei a porcaria da estradinha de areia e ninguém apareceu por lá. A grama continuou verde e intocada, inclusive as folhas secas que a enfeitavam. Aprecio os mosaicos naturais e penso que, de certa forma, eu também sou um. Todo mundo, de um jeito ou de outro, tem esse lado meio mosaico, meio Frankstein: a gente se constrói com um pedaço de um, um pedaço de outro e, quando vê, já não se encontra como um todo, mas em pedacinhos. Eu gostaria de saber o que levaram de mim ou o que eu emprestei de mim "sem saber". Não adianta chutar as pedras ou se importar com a poeira que sobe do chão a cada passo. Não adianta buscar, no pensamento, conversas passadas. Eu preferia ter de conviver mais com minha indiferença e menos com a minha solidão. Ser mais cinza-blue e menos grafite. Cheguei, então, ao fim da estrada: não ganhei nada na trajetória, mas também não me roubaram uma ou outra peça do mosaico. Isso deveria ser bom. Ou não.



segunda-feira, 16 de março de 2009

Mentira!

- E então, o que era verdade?
- Nada. Eu já disse que eu menti.
- O tempo todo?
- O tempo todo.
- E a verdade? Nem tudo foi mentira, sempre tem uma verdade.
- Não, não tem. Não teve. Tudo foi mentira.
- Tudo o que aconteceu? Como você consegue...?
- ...Deitar a cabeça no travesseiro? Eu sempre consigo.
- Não! Como você consegue ser tão ingênuo?!
- Eu não sei o que você entende disso, mas quando alguém planeja uma coisa que foge da sua real vontade, ele está mentindo a fim de...
- Não... Intenção. Sempre existe uma intenção, no mínimo. Ela é verdadeira. Mesmo que os meios não sejam os melhores, os fins sempre são verdadeiros.
- Tá, mas eu agi meio que sem motivação nesse caso, sabe. Pra mim foi indiferente.
- Isso que é estranho: não foi benéfico pra ninguém. Eu não ganhei com isso, você não ganhou, ninguém ganhou.
- Você preferia que eu tivesse agido por egoísmo?
- Eu preferia que você agisse com mais interesse, sabe. Pela vida, pelas coisas, pelas pessoas... olha a sua situação. Você está enganando a si mesmo...
- Não. Eu sei o que eu fiz, o que não fiz, o que omiti e o que cobri com mentiras imundas. Eu sei de tudo e não me sinto mal.
- Olha o teu sorriso como é idiota! Que porcaria de sorriso é esse, que não tem vida, não tem entusiasmo, não tem gosto de vitória? Tu conseguiu entrar em um jogo como um participante completamente inativo, que não pode ganhar nem perder.
- Eu não preciso te provar porque eu estou certo.
- Mas ao menos você precisa entender isso. No mínimo isso.
- Porque? Você acha que eu não sou capaz de bancar minhas ações?
- Eu acho que você é um idiota. Eu já te achava um porco por fazer o que fez, mas me olhar com essa cara e dizer que não tinha motivo nenhum pra isso foi o cúmulo. Você é burro, sabe. E eu tenho nojo de você agora!
- Nossa, como você me deixa angustiado. Sabe, o mundo não é feito de surpresinhas de amor, onde tudo é sincero e lindo e cheio de emoção. Se eu quero sexo, eu quero sexo. Não procuro carinho. Se eu quero comida, eu quero comida e não...
- Chega desse blablablá! Você é homem, e daí? Isso não é argumento. Não te julgo mal pelo que você fez ou deixou de fazer, mas porque você é vazio. Completamente vazio.
- Só porque eu não tenho frases prontas ou não repenso todas as minhas ações vinte e quatro horas por dia não quer dizer que eu seja um vândalo, ou senhor vazio - como você prefere.
- Mas você mentiu! Mentiu o tempo todo! E não foi nem por diversão, foi por nada. Por nada... você destruiu tudo por nada.
- Se tudo era mentira então nada existiu na realidade.
- Não interessa isso agora... Essa foi só a conclusão. Mas a introdução e o desenvolvimento são coisas que não podem ser apagadas. Pra mim era de verdade. E continua sendo, mesmo agora. Eu não consigo tornar irreal o que eu vi acontecer.
- Isso já é problema seu.
- Covardia, isso é uma tremenda covardia! O que você ganhou com isso, me diz. Por que diabos fez isso?
- Olha, eu só fiz, ok? Chega de perguntas... minha cabeça não é recheada de respostas e justificativas. Eu só fiz.
- Só fez? Assim, como se não fosse nada?! Como se fosse o mesmo que passar um trote?!
- Sou eu, entende. E eu não preciso de você pra me encher o saco.
- Até que enfim uma mentira das boas. Achei que fosse custar pra chegar.
- Ahn? Eu não preciso de você. Não preciso mesmo.
- Então porque você simplesmente não foi embora?
- Não é óbvio? Você, pensando ser tudo verdade, ia me procurar até no inferno...
- Ah, mesmo assim ia ser mais digno.
- Mais digno do que revelar a verdade?
- É, mais digno. Pelo menos você não se preocuparia em ver minha expressão de espanto.
- Eu juro que não te entendo.
- É, eu sei.
- De qualquer forma, foi tudo mentira.
- Até aquele dia das pétalas de rosa?
- Sim, tudo mentira.
- Você é o quê? Ator?
- É, talvez. Daí, quando eu acho um papel legal, eu interpreto.
- Mas e você?
- Não existe eu.
- Isso não soou como mentira.
- Pode ser que também seja, eu ainda sou uma incógnita pra mim também.
- Estranho, mas eu sempre gostei disso em você. Que raiva...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Sobre meninas e lobos.

- E então, o que você vai contar?
- Como assim?
- A gente acabou. Que história você vai contar pros seus amigos?
- Nenhuma. Nenhuma ainda, ainda não sei, tenho que pensar...
- Pelo menos você foi sincero, não disse que ia contar "toda a verdade".
- É que, sabe, eu não acho que eles tenham que saber.
- Ok, retiro o que eu disse. Você não precisa dar uma de bom samaritano agora e se importar comigo. A nossa história acabou, entende? Não vai pegar mal se você me cobrir de adjetivos maldosos e essas coisas.
- Mas não é isso que eu quero fazer. Você foi importante pra mim e tudo o que aconteceu foi nada. É normal acontecer esse tipo de crise, cansar, sabe? Eles nem tem o que entender.
- E toda a parte das coisas que você perdeu enquanto estava comigo?
- Eu não perdi nada.
- Certeza?
- É. Eu juro que tento entender de onde você tira todas essas idéias conspiratórias.
- Não... não é isso. É só que, bem, nós estamos quebrados, entende? Mesmo que a gente tente, não seremos amigos agora, assim de repente. Pra dizer a verdade nós seremos nossos piores inimigos pelos próximos meses.
- Porque nós namoramos?
- É, porque você me conhece bem e eu te conheço bem também.
- Nós não nos conhecemos bem, é por isso que a gente está se afastando.
- Mas ainda assim nós temos informações confidenciais um da vida do outro.
- Que seja. Mas eu não pretendo atrapalhar os seus planos.
- E o ciúme?
- Eu nunca tive ciúme, você sabe.
- É, eu sei. Que lixo.
- Sabe, você estava certa quando falou que eu preferia meus amigos.
- É, eu sei. Isso é típico de vocês... as mulheres são mais impulsivas e deixam as amigas de lado facilmente, mas vocês...
- Eu fico feliz com isso. Quer dizer, não por você, mas por estar do lado de cá. Certos ou errados nós nunca saímos um do lado do outro.
- E o que eles diziam quando a gente brigava?
- Depende. Já me mandaram correr atrás de você e já me mandaram te esperar ligar, ir pra uma festa, sei lá.
- Eu sempre tive medo de invadir o território, sabe. Eles são teus amigos, não meus.
- Poderiam ser nossos se você tentasse. Mas eu fico agradecido, na verdade, por você ter respeitado isso. Eu te admiro bastante.
- Admira...
- Não tanto quanto eu já admirei. Sabe, esfriou mesmo. Eu achei que fosse ficar pior num dia como hoje, mas eu estou bem.
- Isso é porque eu estou conversando com você ao invés de soluçar.
- Foi você quem começou, não deveria soluçar mesmo.
- Não é bem assim. Eu estou tentando ser forte, só isso.
- Eu não sei qual é a dificuldade nisso.
- A dificuldade é que você usa sua sensibilidade com a mesma freqüência que usa cosméticos.
- Eu entendi que além de frio eu sou sujo, mas existem outros jeitos de dizer isso.
- Você não fica nem um pouco triste?
- De saber que agora estamos livres para buscarmos a felicidade em outros lugares?
- Nós sempre estivemos livres.
- Não é verdade, gata.
- Eu esperava que você se mostrasse mais sensibilizado. Nós passamos bastante tempo juntos.
- Eu fico te olhando e pensando que, por mais bonita que você seja, eu vou desejar não te encontrar por aí.
- É, vai ser uma merda mesmo te ver com aqueles caras, dando risadas. Eu vou saber que você está bem e você vai ver que eu sou totalmente o oposto.
- Essa sua mania de sofrer sempre me aborreceu.
- Eu sei.
- A vida é mais Blockbuster que isso, sabe? Não adianta você ganhar um Oscar se o filme é anônimo.
- Tem sempre alguém que vai querer assistir o filme.
- Não é legal assistir teu sofrimento habitual. É todo dia, por qualquer coisa. Eu não tenho que fingir que gosto mais de você, isso é legal.
- Puxa...
- Não, não, desculpa! Eu quis dizer que era um saco repetir aquele discurso sobre saudade e amor o tempo todo. Você tem que ser mais segura, os caras gostam disso.
- Meu ex está me dando conselhos - que fim de carreira!
- Ai ai...
- Mas e então? É isso que você vai dizer? Que eu te chamei para uma conversa e a gente acabou?
- Na verdade, eles vão sentir um pouco de pena de você eu acho. E depois a gente vai sair pra beber.
- Porque alguém teria pena..?
- Suas amigas não vão ter pena? Eu imagino que o seu remédio seja me rebaixar por aí.
- É, no início é assim.
- Bom. Ótimo. Olha, tem mais alguma coisa que você queira dizer?
- Eu... não.
- Então, se cuida.
- Eu espero que você encontre alguém legal, sabe. Melhor do que eu...
- Já encontrei. Então tá, a gente se fala.
- Mas...
- É, eu acho que elas vão sentir pena.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Diferente

- É o seu nome mesmo ou é um apelido?
- Os dois.
- Como?!
- Para você esse é só o meu nome, para os mais íntimos funciona como um apelido.
- Er... bem, então é o seu nome. Diferente, não?
- Não. Sabe, eu convivo com ele desde os tempos em que habitava o útero da minha mãe.
- É a primeira vez que vejo alguém que se chama assim...
- Que bom. Não gosto desse mundo comum, onde as pessoas só se diferenciam por números.
- Que insistência! Eu não estou dizendo que você é uma aberração, estou afirmando que seu nome é diferente do usual, só isso.
- Não, você está usando ele para me ridicularizar.
- Então você concorda que é um nome horrível...
- Não, eu concordo que você é horrível, não meu nome.
- Ah, não me venha com...
- Diferente esse seu nariz, não?
- Ora, que desaforo!
- Mas é seu mesmo ou é implante?

[...]

sábado, 17 de janeiro de 2009

Inexpressão (inexata)

Eu saí da cama e evitei minha cara de bunda no espelho do banheiro, procurando escovar os dentes centrada no ralo da pia que, por sinal, estava cheio de cabelo. Sentei na cama para calçar os tênis, colocar desodorante. Eu ia colocar um blusão laranja, mas sempre ouvi que a cor da roupa entrega o nosso humor ou coisa assim, que tem o poder de afastar ou chamar gente para perto, então eu resolvi trocar para um moletom cinza liso com capuz: nada mais inexpressivo que isso. Eu comi alguma coisa e só percebi que estava chovendo quando já estava lá embaixo. Eu geralmente gosto de chuva - o problema é que as outras pessoas não sabem se portar debaixo d'água. Elas pisam nas poças e dirigem de maneira equivocada. Eu geralmente me aborreço com isso, sabe, mas hoje eu acho que não tinha mais nada que pudesse piorar o que eu estava sentindo. Nem calor, nem metrô lotado, nem vendedores do tipo fanáticos religiosos. Tá bom, talvez eles. Mas não apareceram. Sabe, inconsolável talvez fosse o mínimo. Eu quero dizer que nem mesmo alguém que já esteve na mesma situação poderia dizer que sentiu o mesmo. Eu vesti cinza para ninguém achar interessante a minha presença - e não é que eu precisasse de muito esforço para tal -, mas sempre existem os teimosos que insistem em puxar assunto. Teve uma velha e ela comentou sobre uma garota que passou por nós duas, só que eu não concordei com o que ela disse e me fiz de surda. Quer dizer, que saco essa gente. Eu juro que não gosto de ser desagradável, mas vontade sempre existe. Eu botei os fones de ouvido e tentei me esquecer de tudo, de quem eu era e da minha realidade. Não deu tão certo, mas eu não vou dizer que podia ser pior porque não podia. O fato é que eu estava péssima. Nesses dias que a gente se sente gorda e fraca ao mesmo tempo, sabe? É claro que você não sabe. Como eu disse, ninguém sabe. Às vezes, eu acho que eu nasci para ficar sozinha. Nas outras horas, eu não penso em nada e escuto música.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

rewritting

- Eu tenho que te dizer que, naquela vez, eu não queria mesmo ir. Não queria ir, mas era o que eu tinha que fazer. E você tornou tudo insuportável, sabe. Se eu ficasse seria suicídio.
- Mas você preferiu ir. Foi fraco.
- Fraco? Fraco?! Não, você não quis dizer isso... eu sei que não quis...
- Fraco mesmo. E daí que eu existia, eu era uma criança e você sabia disso! Você tinha que ter ficado lá e...
- E o quê?
- Era a minha vontade. Eu queria que você tivesse fic
ado.
- Você queria muita coisa, muita gente ao mesmo tempo.
- Ué, eu tinha entendido que você gostava de mim.
- É, mas gostar e depender são coisas diferentes. Fora que, né, olha a minha cara de ingênuo... Você não pensa realmente que eu achei que nós seríamos perfeitos, pensa?
- Mas nós éramos perfeitos, só que do nosso jeito.
- Do nosso jeito imperfeito? Não, não se iluda... eu estou bem com o que aconteceu, a gente não precisa re-pintar tudo usando cores mais vibrantes. Deixe o cinza como está, a gente não precisa disso.
- A gente? Você quer dizer que ainda...?
- Não. Pare de fantasiar.
- Sabe, naquela época eu realmente não entendia o que vo
cê fazia, mas hoje eu vejo que...
- Você ainda não entende.
- Então me faça entender. Por favor...
- Não, não é assim que funciona. Você nunca procurou ver como foi difícil pra mim? Eu tenho que descrever tudo sempre? Desenhar?
- Eu acho que se você gostasse de mim de verdade não desistiria.
- Eu não desisti, eu simplesmente perdi. Que merda.
- Não perdeu por minha culpa, foi você quem foi embora...
- É, você não tem culpa de nada, nunca tem: eu esqueci desse detalhe...
- O quê? Vai me culpar agora?
- Não sou eu que sou inconstante.
- Como não?

- Meu comportamento é normal, completamente explicável, com ações e reações.
- Então porque não ficou, se era o que você queria?
- Porque eu tinha que recomeçar a minha vida.
- Achei que seu lugar fosse do meu lado...
- Quando eu era o único, eu estava em todos os lados, eu te encontrava, eu sabia o que fazer... mas você tem essa mania de se perder por aí, de se perder com qualquer um... Eu não suporto isso e nem tenho que suportar. Não é por aí.

- Você não queria nada sério nunca, agora vem e diz isso.
- Eu não disse que não queria nada sério. Eu só não fui tão óbvio quanto você queria.
- Então eu estava livre para sair com quem quisesse.
- Tudo bem. É claro. A sua liberdade não depende de mim. Mas você tem que entender que existem prioridades... e eu tenho o direito de escolher quem me quer.
- Lá vem ele falar da outra...
- Eu não vou falar de ninguém. Eu não estou te comparando.
- Sabe, eu acho que subir naquele trem foi a pior merda que você já fez.
- Eu o faria de novo, se você quer saber.
- Não se arrependeu mesmo?
- Eu acho que a gente não daria certo mesmo.

- Eu não acho isso.
- Olha pra você, você quer que eu fique com você ainda hoje e te leve pra casa depois do café, quer que eu prometa que vou ligar e, quando eu ligar, você vai
pensar que resolveu o caso, que eu realmente não te esqueci, que você ganhou o jogo. E vai partir pra outra.
- Não... não, eu não vou. Que horror. Se você quer saber, eu vim aqui disposta a começar tudo de novo com você. Eu quero que você me abrace mesmo, quero tomar café, quero que você tenha algumas roupas lá em casa, quero que você bagunce tudo, que me irrite às vezes e todas essas coisas que a gente fazia.
- Assim, tão fácil? Você nem sabe como anda a minha vida, se eu estou com alguém, se...
- Que merda! Não percebeu que isso não importa? Eu estou me submetendo a uma tremenda humilhação e...
- Humilhação foi o que você fez comigo. E não ouse dizer que não.
- Eu já te disse que eu era imatura.

- Tudo tem limite. Tudo.
- E vai dizer agora que não sentiu falta de nada?
- Não, eu não nego que tenha passado por dias terríveis, semanas perturbadoras...
- Então?
- Não sei. Não quero. Você não mudou. E eu nem queria que mudasse, é só que eu não agüento isso, o seu comportamento aleatório.
- Você não sabe o trabalho que deu conseguir seu telefone.
- É, eu também batalhei para conseguir o seu naqu
ela época.
- Vai ficar por isso mesmo? Não vai dizer que sim nem que não?
- Eu tentei fazer com que você interpretasse tudo como um não.
- Isso é o que você quis ou o que você teve de fazer?
- Se tivesse um trem agora por aqui, eu subiria nele e ficaria te olhando da janela. Sabe, da outra vez eu tive que ficar olhando você beijando um outro sujeito, que não era nem o mesmo do bar. Eu preferia que fosse ele, pelo menos eu pensaria que ele estava cuidando de você.
- Eu sinto muito. Mas eu ainda acho que você suportaria mais do que isso, você foi fraco.
- Sabe, você estragou tudo.
- É, eu sei.
- E, sabe, você nem se importa com a minha vida, você m
esma disse. Eu poderia estar matando um dia de trabalho para vir te ver e você nem liga.
- Você não faria isso... Você é tão certinho.
- É, eu não faria... mas não faria porque você não merece.
- E se eu te disser que não teve graça, ein? Que nenhum dia pra mim teve graça desde aquele maldito dia em que eu te vi subir no trem.
- Eu acho que é tarde demais para você ver isso. E também acho que é mentira sua.
- Você acha que algum cara é como você?
- Não. Mas eu não encaro isso como elogio. Sabe, eu não
tenho muito tempo. Você me aborrece.
- O que mais?
- Sei lá, só isso. Você fudeu com tudo, conseguiu o que queria.
- Não, não consegui.
- Eu acho que esse é o seu único desafio agora, sabe, me fazer voltar. Porque eu sou teimoso e resisto aos seus vestidos decotados, os outros não.
- Você acha que eu ganho os outros só pelos decotes?
- Francamente eu acho. Ninguém quer saber o que você pensa se tem um par de seios bonitos.
- Que crueldade! Sabe, eu quase me casei.
- Com um cara rico? E, ah sim, só não casou porque lembrou de mim, veja só!
- Ah, você não sabe conversar mesmo! Garçom, a conta!
- O que foi, decidiu ir embora assim?
- Ué, você não estava entediado?

- Sim. Hey, eu pago.
- Achei que...
- Não, eu não sou nenhum pé-de-chinelo. Você casaria comigo só pela grana, se fosse o caso. Eu quero dizer, eu já tenho um atrativo, não precisaria que você gostasse de mim. Só que eu não faria isso, não é nada justo.
- Pelo menos eu já disse que queria recomeçar antes de você falar isso.
- É, você continua engraçadinha. Eu gosto disso.
- Pra que lado da cidade você vai?
- Vou te deixar em casa, não se preocupe.

- Não, eu vou pegar um táxi...
- Eu sei que você quer que eu te leve.
- É o que eu quero, mas não é o que eu devo fazer. Eu tinha que achar um trem por aqui e fazer a mesma cena da despedida...
- Não precisa fazer isso. Sabe, eu já disse que estou bem com o que aconteceu.
- E sua família? Eu quero dizer, você pode ter uma filha e eu não saber, pode ter casado com aquela outra e...
- Eu não sou pra casar.
- Hum.
- Eu te levo.
- Sabe, eu continuo achando que foi uma merda o que você fez.
- Eu começo a pensar que sim. Mas era o que eu tinha que fazer.
- Eu continuo morando por lá, só que é do outro lado do parqu
e.
- Eu sei. Eu tenho pesquisado sobre você. Foi por isso que eu vim.
- Nossa.
- Surpresa?
- É que eu realmente não achei que você se lembrasse de mim, sabe, desse jeito.
- Eu lembro de muita coisa. Eu não sou desligado, como você diz.
- Você é meio parado, meio inerte para tudo. Está sempre pensando em coisas distantes.
- Aqui estamos.
- Que rápido.
- E então?
- Você sabe onde eu moro. Fica no carro e espera eu en
trar. Se for o caso, você vai saber voltar. Eu não vou ficar esperando.
- É, você cresceu.
- Eu disse.
- Eu tenho que voltar pro trabalho agora, mas eu te ligo mais tarde.
- Você não disse que...?
- Eu não ia perder isso por nada.
- Sabe, eu estou com um pouco de medo. Eu não vou estar preparada, caso você pretenda se vingar. Eu estou desarmada.
- Eu acho que a gente não tem tempo pra isso.

- A gente? Você quis dizer...?
- Sim.
- Se eu pudesse ter parado aquele trem...
- Eu vou voltar dessa vez.