
domingo, 5 de julho de 2009
Sobre o ridículo do sentir

segunda-feira, 9 de março de 2009
Say that you'll stay.
Naquele momento em especial, eu não saberia descrever o que eu sentia. Mesmo que eu quisesse. Não é que eu não tenha tentado, mas eu nunca cheguei nem perto da definição. Os braços dele em torno de mim, os meus braços em torno do pescoço dele. Eu apoiei minha cabeça no seu ombro esquerdo de forma tão confortável e isso foi tão espontâneo e sincero. Não importava se eu deveria estar em outro lugar, com outra pessoa. Por mais erradas que fossem, de todas as minhas atitudes aquela tinha sido a mais certa. É meio estranho quando você está no centro de um enozado de histórias e não encontra fuga para seus problemas: foi naquele abraço que eu encontrei o refúgio tão esperado. Meus olhos continuaram abertos e, ainda que cruzassem com vários indesejados rostos conhecidos, pareciam não se aborrecer com nada. Nem lembro das músicas. Com certeza não eram boas. Não era o tipo de lugar que eu freqüentava. Mas, e não falo isso para alimentar um ar romântico, com música ou sem música tudo o que eu ouvia era um silêncio macio e nervoso. Sabe, é aquele silêncio de quem sente o sangue do outro correndo pelas veias, de quem poderia fazer de um piscar de olhos um estrondo, de quem está com o coração na boca. Independente de todas as palavras que eu tivesse ousado dizer ou escrever ou expulsar de mim numa forma de aliviar a angústia, aquele momento foi tão autosuficiente. Não se trata de inexpressão, mas de incredulidade. Ele, de cujas mãos sempre estiveram geladas, me abraçou de forma tão quente. Mas quente de verdade, sem pretensão de transformar isso em um outro acontecimento. Eu gosto de coisas despretensiosas, espontâneas, simplesmente puras. Ele me envolveu de tal forma que fora a primeira vez, talvez, que eu me senti realmente protegida. Ele não sabia o que eu estava pensando - e nem eu sabia, mas foi como se pudesse lidar com isso melhor do que ninguém, lidar com a confusão da minha vida e nem se importar com o sacrifício que isso significava. Eu nunca tinha me sentido satisfeita, mas por algum tempo isso saciou o meu desespero. E me deu medo também. Eu não gosto de pertencer a alguém, não gosto que me alguém tenha controle sobre a minha paz de espírito. Mas, naquele momento, eu nem me importei. O mundo poderia explodir e eu nem me importaria. Eu sabia o quão problemático podia ser se aquele abraço caísse na boca dos outros, sabia que qualquer manifestação teria conseqüências realmente devastadoras. E, o mais admirável talvez, é que ele conhecia isso tão bem quanto eu. Pelo menos naquela hora. E foi um abraço longo, sem medo do futuro ou de um passado insistente. Foi como se ele me impedisse de fazer qualquer movimento, de dizer qualquer bobagem ou mesmo uma verdade. Foi como se eu realmente tivesse alguém que se importasse e que, mesmo contrariado, buscava me entender. E, apesar de eu não ter sido o suficiente, ele nunca me deixou de lado. Foi o único que enxergou em meio a fumaça uma oportunidade. É tão mais fácil fugir, como eu fazia. Ele sabia que estava errado ao me abraçar, como se cansou de ouvir por meses e meses. E a única coisa que eu disse não tomou a proporção que deveria, mas foi totalmente sincera - foi fruto de um impulso que há tempos eu alimentava. Eu quis aquele abraço como ninguém, quis aquela verdade e toda a ansiedade que se fez presente. Guardei o momento em um baú e joguei a chave fora.
domingo, 8 de março de 2009
mistaken
você não vai entender.
e eu nem decidi ainda se quero que alguém entenda.
eu opto por não decidir, na verdade. é menos um erro pra cometer, sabe.
o fato é que, às vezes, eu penso estar com ele quando na verdade eu sou ele.
nós dois não somos "nós", nós somos eu e ele.
mas é como se fosse a mesma coisa.
não é que sejamos tão parecidos ou tenhamos infinitas afinidades, mas a nossa ligação é totalmente emocional.
é incompreensível para qualquer um, é motivo de briga, de ciúme - o suficiente para duvidar de qualquer sentimento.
eu mudei a vida dele, ele mudou a minha.
a gente não sabe disso porque a gente troca palavras, a gente sabe disso porque a gente sente.
ele foi amigo e também foi inimigo.
ele ainda é. só isso.
tem pessoas que estão e pessoas que são.
mesmo com toda a distância, de tempo e quilômetros, ele nunca deixou de ser.
e não é que eu sinta algum tipo de dor ou afeto, eu só sinto o que deveria sentir.
ele sente o mesmo.
é de uma inocência tão absurda acreditar no poder das lembranças...
mas é esse o sintoma que nos acomete - a mágica de um passado de pureza.
pureza nos gestos, nas ações, nos pensamentos.
não é minha culpa se ele faz parte de mim.
não foi minha pretensão arquitetar uma tempestade.
antes fosse tudo isso: seria mais fácil esquecer.
mas nem sempre o que passou, mesmo nesse contexto de passado como um vilão, deixa sombras tão amargas.
basta um pouco de luz para ver o que restou.
só a idéia de algo ter sobrado já resume a satisfação.
é bom se sentir vivo ao relembrar um momento.
são essas pequenas raridades do dia-a-dia que nos fazem diferentes dos demais.
eu e ele somos iguais, não em cabeça mas em coração.
e não é que não possamos nos encontrar em outras pessoas.
é só que fazemos parte um do outro.
e nunca vamos embora.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Sobre meninas e lobos.
- E então, o que você vai contar?
- Como assim?
- A gente acabou. Que história você vai contar pros seus amigos?
- Nenhuma. Nenhuma ainda, ainda não sei, tenho que pensar...
- Pelo menos você foi sincero, não disse que ia contar "toda a verdade".
- É que, sabe, eu não acho que eles tenham que saber.
- Ok, retiro o que eu disse. Você não precisa dar uma de bom samaritano agora e se importar comigo. A nossa história acabou, entende? Não vai pegar mal se você me cobrir de adjetivos maldosos e essas coisas.
- Mas não é isso que eu quero fazer. Você foi importante pra mim e tudo o que aconteceu foi nada. É normal acontecer esse tipo de crise, cansar, sabe? Eles nem tem o que entender.
- E toda a parte das coisas que você perdeu enquanto estava comigo?
- Eu não perdi nada.
- Certeza?
- É. Eu juro que tento entender de onde você tira todas essas idéias conspiratórias.
- Não... não é isso. É só que, bem, nós estamos quebrados, entende? Mesmo que a gente tente, não seremos amigos agora, assim de repente. Pra dizer a verdade nós seremos nossos piores inimigos pelos próximos meses.
- Porque nós namoramos?
- É, porque você me conhece bem e eu te conheço bem também.
- Nós não nos conhecemos bem, é por isso que a gente está se afastando.
- Mas ainda assim nós temos informações confidenciais um da vida do outro.
- Que seja. Mas eu não pretendo atrapalhar os seus planos.
- E o ciúme?
- Eu nunca tive ciúme, você sabe.
- É, eu sei. Que lixo.
- Sabe, você estava certa quando falou que eu preferia meus amigos.
- É, eu sei. Isso é típico de vocês... as mulheres são mais impulsivas e deixam as amigas de lado facilmente, mas vocês...
- Eu fico feliz com isso. Quer dizer, não por você, mas por estar do lado de cá. Certos ou errados nós nunca saímos um do lado do outro.
- E o que eles diziam quando a gente brigava?
- Depende. Já me mandaram correr atrás de você e já me mandaram te esperar ligar, ir pra uma festa, sei lá.
- Eu sempre tive medo de invadir o território, sabe. Eles são teus amigos, não meus.
- Poderiam ser nossos se você tentasse. Mas eu fico agradecido, na verdade, por você ter respeitado isso. Eu te admiro bastante.
- Admira...
- Não tanto quanto eu já admirei. Sabe, esfriou mesmo. Eu achei que fosse ficar pior num dia como hoje, mas eu estou bem.
- Isso é porque eu estou conversando com você ao invés de soluçar.
- Foi você quem começou, não deveria soluçar mesmo.
- Não é bem assim. Eu estou tentando ser forte, só isso.
- Eu não sei qual é a dificuldade nisso.
- A dificuldade é que você usa sua sensibilidade com a mesma freqüência que usa cosméticos.
- Eu entendi que além de frio eu sou sujo, mas existem outros jeitos de dizer isso.
- Você não fica nem um pouco triste?
- De saber que agora estamos livres para buscarmos a felicidade em outros lugares?
- Nós sempre estivemos livres.
- Não é verdade, gata.
- Eu esperava que você se mostrasse mais sensibilizado. Nós passamos bastante tempo juntos.
- Eu fico te olhando e pensando que, por mais bonita que você seja, eu vou desejar não te encontrar por aí.
- É, vai ser uma merda mesmo te ver com aqueles caras, dando risadas. Eu vou saber que você está bem e você vai ver que eu sou totalmente o oposto.
- Essa sua mania de sofrer sempre me aborreceu.
- Eu sei.
- A vida é mais Blockbuster que isso, sabe? Não adianta você ganhar um Oscar se o filme é anônimo.
- Tem sempre alguém que vai querer assistir o filme.
- Não é legal assistir teu sofrimento habitual. É todo dia, por qualquer coisa. Eu não tenho que fingir que gosto mais de você, isso é legal.
- Puxa...
- Não, não, desculpa! Eu quis dizer que era um saco repetir aquele discurso sobre saudade e amor o tempo todo. Você tem que ser mais segura, os caras gostam disso.
- Meu ex está me dando conselhos - que fim de carreira!
- Ai ai...
- Mas e então? É isso que você vai dizer? Que eu te chamei para uma conversa e a gente acabou?
- Na verdade, eles vão sentir um pouco de pena de você eu acho. E depois a gente vai sair pra beber.
- Porque alguém teria pena..?
- Suas amigas não vão ter pena? Eu imagino que o seu remédio seja me rebaixar por aí.
- É, no início é assim.
- Bom. Ótimo. Olha, tem mais alguma coisa que você queira dizer?
- Eu... não.
- Então, se cuida.
- Eu espero que você encontre alguém legal, sabe. Melhor do que eu...
- Já encontrei. Então tá, a gente se fala.
- Mas...
- É, eu acho que elas vão sentir pena.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
rewritting
- Eu tenho que te dizer que, naquela vez, eu não queria mesmo ir. Não queria ir, mas era o que eu tinha que fazer. E você tornou tudo insuportável, sabe. Se eu ficasse seria suicídio.
- Mas você preferiu ir. Foi fraco.
- Fraco? Fraco?! Não, você não quis dizer isso... eu sei que não quis...
- Fraco mesmo. E daí que eu existia, eu era uma criança e você sabia disso! Você tinha que ter ficado lá e...
- E o quê?
- Era a minha vontade. Eu queria que você tivesse ficado.
- Você queria muita coisa, muita gente ao mesmo tempo.
- Ué, eu tinha entendido que você gostava de mim.
- É, mas gostar e depender são coisas diferentes. Fora que, né, olha a minha cara de ingênuo... Você não pensa realmente que eu achei que nós seríamos perfeitos, pensa?
- Mas nós éramos perfeitos, só que do nosso jeito.
- Do nosso jeito imperfeito? Não, não se iluda... eu estou bem com o que aconteceu, a gente não precisa re-pintar tudo usando cores mais vibrantes. Deixe o cinza como está, a gente não precisa disso.
- A gente? Você quer dizer que ainda...?
- Não. Pare de fantasiar.
- Sabe, naquela época eu realmente não entendia o que você fazia, mas hoje eu vejo que...
- Você ainda não entende.
- Então me faça entender. Por favor...
- Não, não é assim que funciona. Você nunca procurou ver como foi difícil pra mim? Eu tenho que descrever tudo sempre? Desenhar?
- Eu acho que se você gostasse de mim de verdade não desistiria.
- Eu não desisti, eu simplesmente perdi. Que merda.
- Não perdeu por minha culpa, foi você quem foi embora...
- É, você não tem culpa de nada, nunca tem: eu esqueci desse detalhe...
- O quê? Vai me culpar agora?
- Não sou eu que sou inconstante.
- Como não?
- Meu comportamento é normal, completamente explicável, com ações e reações.
- Então porque não ficou, se era o que você queria?
- Porque eu tinha que recomeçar a minha vida.
- Achei que seu lugar fosse do meu lado...
- Quando eu era o único, eu estava em todos os lados, eu te encontrava, eu sabia o que fazer... mas você tem essa mania de se perder por aí, de se perder com qualquer um... Eu não suporto isso e nem tenho que suportar. Não é por aí.
- Você não queria nada sério nunca, agora vem e diz isso.
- Eu não disse que não queria nada sério. Eu só não fui tão óbvio quanto você queria.
- Então eu estava livre para sair com quem quisesse.
- Tudo bem. É claro. A sua liberdade não depende de mim. Mas você tem que entender que existem prioridades... e eu tenho o direito de escolher quem me quer.
- Lá vem ele falar da outra...
- Eu não vou falar de ninguém. Eu não estou te comparando.
- Sabe, eu acho que subir naquele trem foi a pior merda que você já fez.
- Eu o faria de novo, se você quer saber.
- Não se arrependeu mesmo?
- Eu acho que a gente não daria certo mesmo.
- Eu não acho isso.
- Olha pra você, você quer que eu fique com você ainda hoje e te leve pra casa depois do café, quer que eu prometa que vou ligar e, quando eu ligar, você vai pensar que resolveu o caso, que eu realmente não te esqueci, que você ganhou o jogo. E vai partir pra outra.
- Não... não, eu não vou. Que horror. Se você quer saber, eu vim aqui disposta a começar tudo de novo com você. Eu quero que você me abrace mesmo, quero tomar café, quero que você tenha algumas roupas lá em casa, quero que você bagunce tudo, que me irrite às vezes e todas essas coisas que a gente fazia.
- Assim, tão fácil? Você nem sabe como anda a minha vida, se eu estou com alguém, se...
- Que merda! Não percebeu que isso não importa? Eu estou me submetendo a uma tremenda humilhação e...
- Humilhação foi o que você fez comigo. E não ouse dizer que não.
- Eu já te disse que eu era imatura.
- Tudo tem limite. Tudo.
- E vai dizer agora que não sentiu falta de nada?
- Não, eu não nego que tenha passado por dias terríveis, semanas perturbadoras...
- Então?
- Não sei. Não quero. Você não mudou. E eu nem queria que mudasse, é só que eu não agüento isso, o seu comportamento aleatório.
- Você não sabe o trabalho que deu conseguir seu telefone.
- É, eu também batalhei para conseguir o seu naquela época.
- Vai ficar por isso mesmo? Não vai dizer que sim nem que não?
- Eu tentei fazer com que você interpretasse tudo como um não.
- Isso é o que você quis ou o que você teve de fazer?
- Se tivesse um trem agora por aqui, eu subiria nele e ficaria te olhando da janela. Sabe, da outra vez eu tive que ficar olhando você beijando um outro sujeito, que não era nem o mesmo do bar. Eu preferia que fosse ele, pelo menos eu pensaria que ele estava cuidando de você.
- Eu sinto muito. Mas eu ainda acho que você suportaria mais do que isso, você foi fraco.
- Sabe, você estragou tudo.
- É, eu sei.
- E, sabe, você nem se importa com a minha vida, você mesma disse. Eu poderia estar matando um dia de trabalho para vir te ver e você nem liga.
- Você não faria isso... Você é tão certinho.
- É, eu não faria... mas não faria porque você não merece.
- E se eu te disser que não teve graça, ein? Que nenhum dia pra mim teve graça desde aquele maldito dia em que eu te vi subir no trem.
- Eu acho que é tarde demais para você ver isso. E também acho que é mentira sua.
- Você acha que algum cara é como você?
- Não. Mas eu não encaro isso como elogio. Sabe, eu não tenho muito tempo. Você me aborrece.
- O que mais?
- Sei lá, só isso. Você fudeu com tudo, conseguiu o que queria.
- Não, não consegui.
- Eu acho que esse é o seu único desafio agora, sabe, me fazer voltar. Porque eu sou teimoso e resisto aos seus vestidos decotados, os outros não.
- Você acha que eu ganho os outros só pelos decotes?
- Francamente eu acho. Ninguém quer saber o que você pensa se tem um par de seios bonitos.
- Que crueldade! Sabe, eu quase me casei.
- Com um cara rico? E, ah sim, só não casou porque lembrou de mim, veja só!
- Ah, você não sabe conversar mesmo! Garçom, a conta!
- O que foi, decidiu ir embora assim?
- Ué, você não estava entediado?
- Sim. Hey, eu pago.
- Achei que...
- Não, eu não sou nenhum pé-de-chinelo. Você casaria comigo só pela grana, se fosse o caso. Eu quero dizer, eu já tenho um atrativo, não precisaria que você gostasse de mim. Só que eu não faria isso, não é nada justo.
- Pelo menos eu já disse que queria recomeçar antes de você falar isso.
- É, você continua engraçadinha. Eu gosto disso.
- Pra que lado da cidade você vai?
- Vou te deixar em casa, não se preocupe.
- Não, eu vou pegar um táxi...
- Eu sei que você quer que eu te leve.
- É o que eu quero, mas não é o que eu devo fazer. Eu tinha que achar um trem por aqui e fazer a mesma cena da despedida...
- Não precisa fazer isso. Sabe, eu já disse que estou bem com o que aconteceu.
- E sua família? Eu quero dizer, você pode ter uma filha e eu não saber, pode ter casado com aquela outra e...
- Eu não sou pra casar.
- Hum.
- Eu te levo.
- Sabe, eu continuo achando que foi uma merda o que você fez.
- Eu começo a pensar que sim. Mas era o que eu tinha que fazer.
- Eu continuo morando por lá, só que é do outro lado do parque.
- Eu sei. Eu tenho pesquisado sobre você. Foi por isso que eu vim.
- Nossa.
- Surpresa?
- É que eu realmente não achei que você se lembrasse de mim, sabe, desse jeito.
- Eu lembro de muita coisa. Eu não sou desligado, como você diz.
- Você é meio parado, meio inerte para tudo. Está sempre pensando em coisas distantes.
- Aqui estamos.
- Que rápido.
- E então?
- Você sabe onde eu moro. Fica no carro e espera eu entrar. Se for o caso, você vai saber voltar. Eu não vou ficar esperando.
- É, você cresceu.
- Eu disse.
- Eu tenho que voltar pro trabalho agora, mas eu te ligo mais tarde.
- Você não disse que...?
- Eu não ia perder isso por nada.
- Sabe, eu estou com um pouco de medo. Eu não vou estar preparada, caso você pretenda se vingar. Eu estou desarmada.
- Eu acho que a gente não tem tempo pra isso.
- A gente? Você quis dizer...?
- Sim.
- Se eu pudesse ter parado aquele trem...
- Eu vou voltar dessa vez.
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
amor fora da lei
Com os pés no chão gelado pelo frescor da madrugada, ela abriu a geladeira e tirou do centro a única coisa que ali havia: uma jarra transparente, contendo um líquido ainda mais cristalino. O som da água encontrando o fundo do copo ecoou no silêncio da noite clara, de poucas nuvens. O céu, que anunciava o princípio da manhã, foi apreciado pela fresta da janela. A brisa deliciosa, de arrepiar a pele, era constante nessa época do ano.
Uma xícara de café seria mais do que o suficiente para um despertar agradável, mas ela queria mais e, junto com o conhaque, degustou dois bombons de uma caixa de chocolates franceses. Lambeu os dedos e os secou nas laterais da regata cinza e comprida que vestia. Os azulejos, os bancos e todas as nuances que aquele dia 21 poderiam oferecer foram apreciados com estima. Tudo estava tão blue. E, sem mais nem menos, ela começou a se perguntar sobre a noite passada.
Caminhou com passos leves até a cama, onde um homem dormia esparramado sobre o edredom. Parecia ser bonito, realmente bonito. Suspirou profundamente e inclinou-se, acomodando o copo no chão, no lado esquerdo da porta. Curvou o corpo ainda mais e agora engatinhava em frente aos móveis, com o olhar sorrateiro de quem procura determinado objeto. Não demorou para concluir que o tal não estaria embaixo do colchão. Resolveu experimentar o clássico: pôs-se, então, a vasculhar o gavetão de meias e cuecas. Ali estava a minúscula chave.
Um último gole antes de empurrar, com o pé, o copo para debaixo de uma cadeira, de forma a tirá-lo do caminho. Olhou carinhosamente para o dono dos ruídos de quem se deixa levar pelos sonhos. Voltou-se para a parede, sorrindo com os lábios. Não existia maldade naquela cena, nem pureza naquele ato.
Nada mais previsível do que esconder um cofre com um quadro. E não era um quadro qualquer: não exibia o corpo de uma mulher seminua, nem flores ou figuras geométricas, mas uma paisagem escura e até triste, em tons de cinza e azul. A vida em grafite sempre atraiu aquela mulher. Tirou cuidadosamente o retângulo da parede, sem hesitar. Não sentia nem um mínimo de ansiedade, o que talvez declarasse sua falta de caráter. Mas não era assim de verdade.
Em poucos minutos, a chave estava no seu devido lugar; o copo brilhava limpo e seco; o tapete do banheiro voltara a ser desarrumado, com jeito de gesto de homem. Ela pensou em devolver a roupa dele ao sair, mas sentiria falta daquela recordação. Ao invés disso, esticou sobre a poltrona da sala o lindo vestido preto que usara na noite anterior, em troca da regata cinza. Borrifou o vestido com seu perfume e deixou um cartão sobre a mesa, ao lado da garrafa de conhaque vazia.
Despediu-se silenciosamente do apartamento, lamentando a impossibilidade de voltar. Mas valeria a pena toda a saudade: vários e vários dólares na mão a fariam esquecer de qualquer coisa, qualquer coisa. Repousou sobre o cinzeiro o cigarro manchado de batom e, ao ouvir o som dos lençóis se movimentando com o balançar de um corpo, levantou-se de imediato, calçando os escarpins pretos e envernizados. Antes de bater a porta, seus olhos cruzaram-se com os dele, que ainda não estavam bem abertos - desavisados.
Antes fosse uma experiência única, na qual uma mulher atraente de uma festa qualquer rouba dinheiro do cara com quem passou a noite: muitos foram vítimas da mesma. E acabava sempre assim, silencioso. Por mais blue que fosse, esse era o estilo de vida em tons grafite do qual ela tanto gostava. Não havia reação masculina diante do incrédulo, nem culpa por parte da amante: fazia seu serviço, e bem feito - não era por isso que precisava ser paga. O caso não se tratava de como sobreviver às custas do furto, mas da solidão - se apaixonava todas as noites e, ao acordar, só encontrava um jeito de se afastar: se não fosse pela dor da irreciprocidade, que nunca chegou a conhecer, provocaria um jeito de envergonhar-se e, a partir dessa atitude, fugir.
sábado, 28 de junho de 2008
Não é você.
"Eu deveria distribuir bulas, como se eu fosse um remédio com caixinha tarja-preta. Seria mais fácil para eu e todo mundo conviver em harmonia, sem esses dramas corriqueiros. Não que o egocentrismo tenha tapado meus olhos a ponto de impedir-me de aceitar a existência de outras pessoas, mas eu realmente penso que é mais complicado comigo - como a maioria deve pensar... Acontece que é tudo previsível. Veja, que legal!, nós nos beijamos. Sabe, nem sempre beijo é tudo na vida. É deprimente ficar entediada e desejar estar sozinha. Ainda bem que isso não parece acontecer com os outros habitantes desse planeta. No fundo, é até meio covarde aceitar ser um pedaço de alguma coisa para alguém que não tem nada, sabe. Quer dizer, é como alimentar vampiros com sangue de cadáver, sabe? E não existe isso de dizer que não sabia, porque a gente sempre sabe quando é importante - ou pelo menos tem um pouco de noção. É tão trágico pensar nessa relação de que mesmo 'sozinhos e felizes' existe a impressão ou curiosidade de como seria se fôssemos nós e mais um ou outro. E você liga a tv, assiste um filme, vai no supermercado e se depara com todo esse sentimento de que 'ok, você está sobrando, baby' - porque não tem ninguém para chamar de baby ou algo mais brega. A minha intenção não é seguir repetindo o que já se sabe, mas enfim, tentar jogar um balde de água fria nessa merda toda de construir e desmoronar. Nos outros animais essa relação macho-fêmea é tão mais objetiva, que inveja! Existe gente por toda parte, gente procurando qualquer coisa, gente sonhando com algo específico, gente ocupada demais com alguma coisa que perto da idéia de amor não é tão importante (tipo a cura da Aids), gente ocupada com qualquer outro pensamento. E, então, eu penso: onde eu me coloco? Porque eu não estou procurando ninguém, não sou exatamente ocupada com nada e metade das coisas que eu digo eu invento na hora. A idéia da bula não é original, mas realmente não é má idéia. Acabaria com a mágica da coisa, mas seria tão mais eficiente aceitar e recusar paixonites alheias como se faz com contatos do Orkut. Não é querer promover a libertinagem, mas o apego emocional inibe tantas sensações. Cruzar a linha é algo tão simples e perigoso quando se fala em relacionamentos - depois que algo começa isso só tende a acabar. Ótimo, renovação! - você pensa, mas a conseqüência chega em uma mala de problemas que te tiram o sono. Pensando na Clementine, na Claudia e numa outra personagem de um outro filme, da linha "que toda adolescente acha meigo", não parece horrível não autorizar alguém a alimentar sentimentos por mim. Isso pode ser encarado como uma sinceridade fria e resumiria muita coisa. "Oi, não quero ter nada com você pois sei que vou ficar entediada" - dizer isso e resistir àquelas frases de efeito comuns, onde a pessoa promete que vai agir de um jeito diferente - isso é triste, uma vez que ela vai pensar em alguma história comum de relacionamento que fracassou entre você e outro alguém. A primeira coisa é pensar que te traíram, a segunda é perto disso - e nunca chegam no real problema. Até por isso eu não acho um crime o típico suspiro de "não é você, sou eu". Afinal, sou eu que escondi todo esse emaranhado de coisas que você me fez ou não sentir. Ou não escondi, como pode acontecer, mas, enfim, você não viu - e isso não é motivo para mais drama e músicas com a letra "mas você não viu...", tipo Pitty. Realmente, perderia a graça escrever um manual... dizer que eu visto cinza nos dias cinzas e preto nos momentos de raiva, comentar que verde ajuda a destilar veneno e rosa é sinônimo de insegurança. O processo de decadência faz parte da evolução, sabe. Eu falo disso, de saber ouvir, entender e crescer. O problema maior é que as pessoas simplesmente trocam as duplas e se esquecem das vezes em que foram ridículas, seja por fazerem ou não alguma coisa. O que me faz agir como um tabuleiro de xadrez é pensar que as jogadas são previsíveis, uma vez que se percebe quem são os jogadores por trás das peças. Mas eu queria dizer que comigo é mais complicado, não é? Então talvez não adiante muito concluir com "não é você, sou eu" como justificativa. Que se foda."
Laurah.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
heroína.
Duda regurgitou a comida, vomitou os comprimidos, bebeu tudo que podia beber e passou a manhã indo e voltando do banheiro. Azia e tédio. Pensou em recorrer ao casal gay de amigos que, vez ou outra, faziam o papel dos pais dela, mas a preguiça de se levantar do tapete felpudo e caminhar até o telefone era maior.
Dormiu por cerca de duas horas, a baba escorrendo pelo canto da boca. Era realmente uma garota muito bonita, dessas que, de uma hora pra outra, resolvem tingir o cabelo loiro de laranja e cortar a franja - como se acordassem para a vida ao se encontrar numa foto de revista.
O ringtone psicodélico a fez despertar dos sonhos escrotos, obrigando-a a procurar o celular em meio as folhas de papel vegetal. Plantas e mais plantas de apartamentos luxuosos, desses cujos panfletos são distribuídos nas sinaleiras das capitais, por moças de bonés e calças laranjas que, provavelmente, não foram muito sortudas na vida.
Recebeu uma mensagem de texto anônima, onde uma suposta colega de faculdade afirmava ter visto o namorado de Duda com outra pessoa, numa festa na noite passada. Não fora uma surpresa, afinal qualquer mal-feito é esperado quando um relacionamento não está bem. A confirmação pelos olhos da amiga fez Duda sentar no sofá, tentando se equilibrar e se livrar da tontura. Quanto mais lúcida estivesse melhor: fazer as coisas de modo impulsivo só faz piorar as conseqüências.
Em dois segundos desesperados já estava atracada no telefone, discando a única seqüência numérica que decorara nos últimos cinco anos. Quando informou que queria falar com Lilian ouviu sua voz sair fraca e tremida, o que ligeiramente a deixou envergonhada. Há muito deixara de ser uma boa companhia na visão dos pais da amiga. A bulimia e as constantes vezes em que fez escândalos por motivos insuficientes contavam pontos nessa observação.
Lilian não estava em casa, mas isso não impediu Duda de encontrá-la.
- Pode falar?
- Sempre. Que foi, cara? Tá de porre?
- Não, não é isso, não...
- Hum... Tá, fala rápido.
- Olha só, aquilo que eu te disse do Marcos... A Jô, eu acho, viu o Marcos ontem com uma vadia, cara.
- Vadia? Tá, mas ela viu a...?
- Ah, nem sei. Mas tanto faz, cara... sério, eu nem sei que que eu faço primeiro...
- Hum... mas, olha só, nem faz nada ainda, cara. Ele é um merda total né, nem podia ter feito isso contigo. Não deixa barato, cara... só pensa antes no que tu vai fazer.
- Ai meu, sei lá. Que filho da puta. Tipo assim... vontade de matar os dois, saca?
- Hum? Fala direito, porra. Tu tá falando toda errada.
- Eu quero ver quem é a vadia... e ele vai me dizer que porra é essa que ele tá fazendo, porque eu nunca fiz nada pra ele resolver fazer isso assim... ah, vai dizer, eu sou tri.
- Sim, cara. Eu te amo, cara, nem posso falar nada. Na boa, acaba com ele assim do nada e dá o troco. Nem precisa dizer que tu sabe o que houve e tal... ou sei lá, começa a sair com o Caio, que ele odeia e tal...
- Sim, eu vou ver ele hoje mesmo. E o filho da puta vai ficar sabendo.
- Tá, ele vai dormir aí?
- É né, óbvio.
- Ah, bela vingança então. Na boa, é o melhor que tu tem a fazer... porque ficar chupando dedo ou mostrando que tu se importa também nem eras né... o Marcos é muito otário de fazer isso contigo.
- Isso que eu pensei, cara! Eu não vou ficar chorando por causa dele e tal.
- Ah, meu, vou desligar.
- Tá, depois eu te ligo. E, olha só, se o Marcos falar contigo deixa quieto né, age normalmente...
- Sim, certo. Tchau, beijo.
- Ai, meu, tu é tudo! Beijo.
Lilian colocou o aparelho na borda da piscina, mergulhando em seguida para molhar o cabelo, que havia secado durante a conversa. Sorriso ansioso, entre o sentimento de felicidade e nervosismo. Vendo que o rapaz se aproximava, trazendo um copo em cada mão, ela brindou internamente mais uma conquista: "A Jô, eu acho, viu o Marcos ontem com uma vadia", pensou, rindo da inocência da jovem de cabelos repicados desbotados. Nada como um aparelho de celular cujo número não esteja na agenda do destinatário...
Ele entrou na piscina, indo de encontro às costas de Lilian. Um beijo delicado e uma pergunta: quem ligou? Ela contou sobre Duda, comentou o quão desequilibrada andava a amiga - que acordara meio enjoada e precisava da ajuda dela para resolver uns problemas.
- Tá, eu vou ser sincera: ela quer te pedir desculpas pelas merdas e tal. Eu acho que ela realmente se arrependeu, sabe, ela é meio imatura às vezes, mas é boa pessoa.
- Do nada isso? Ela sempre quer brigar por qualquer coisa, a troco de que ela resolveu que estava errada?
- Ela é orgulhosa, mas ela sabe que estava pegando demais no teu pé, Marcos. Além do mais, ela gosta de ti pra caralho, não ia querer deixar essa distância entre vocês.
- Hum... é, pode ser. Ela já correu atrás antes, né? Pelo menos ela não desconfia de nada.
- Da gente? Não, nunca... E eu falei pra ela mil vezes que tu é um cara legal, que isso e aquilo... Opinião de amiga é o que conta, né? Então, eu cresci com ela, cara, eu sei do que eu tô falando... Ela tá super na tua.
- Ah, sério, tu é foda. Super cretina, mas muito foda.
- Mas, assim, fica comigo aqui e depois que tu me deixar em casa passa lá...
- De noite?
- É, faz uma visita. Não custa nada... e tu ainda se passa por namorado superpreocupado, já que ela andava exagerando na dose, né.
- Sim, eu vou ver se vou lá e tal... mas a gente tem tempo até lá...
O final da história não é necessariamente feliz. Sendo ficção, é ótimo fazer com que tudo dê certo: Marcos resolve aparecer na casa da namorada, encontrando Duda aos beijos com Caio. Ela se sentindo vingada e não exatamente enganada, ele um tanto contrariado com a cena. Ambos pensaram em Lilian como uma heroína, cada um com seus motivos particulares e errôneos: braços abertos o tempo todo parecem ser realmente um privilégio impagável.
domingo, 20 de abril de 2008
Encontros e Desencontros
Checou os e-mails, abriu o jornal. A mesma notícia, sobre pessoas totalmente diferentes. Suas semelhanças? O vínculo com a mesma garota, o encontro com a dama da barca no mesmo dia. Faleceram por motivos opostos: um por fumar demais - overdose, na verdade -, o outro no papel de vítima, em um acidente de carro cujo responsável fora um estranho alcoolizado.
Lee passou grande parte da manhã no escritório, entre papéis e copinhos descartáveis de café forte, bem forte. Sentada sobre uma das pernas, que estava cruzada, olhava inquieta da folha cinzenta para o monitor, onde um breve texto anunciava a morte de um sujeito por quem ela há muito suspirara.
Não se sentia exatamente mal pela perda, afinal encerrara o contato com todos os seus ex-namorados e casos - com esses não seria diferente. Mas, sabia, foram importantes de algum jeito. E agora seriam mais uma vez enterrados, de forma definitiva e inevitável.
De repente, uma onda de remorso começou a invadir seu corpo. Passou pelos dedos, subiu pelo pescoço, alcançou sua expressão de indiferença. Lee sempre foi uma dessas pessoas encanadas com a passagem do tempo - com o que fica e o que ele destrói. Sabia que, enquanto vivos, nada ouviriam de sua boca os pobres rapazes. Só não planejava ter palavras na ponta da língua agora, quando eles não passam de corpos inanimados.
Nunca mais os viu. Tudo o que conhecia eram os relatos de um quarto indivíduo, colega de trabalho de um dos dois e, casualmente, seu vizinho. Numa dessas conversas que acontecem nos segundos que só os elevadores proporcionam, descobriram que tinham um Giovanne em comum.
O e-mail não fora apelativo, não pedira sua participação no enterro, tampouco mostrava sensibilidade. Fora um comunicado, do tipo "olha, teu ex morreu", sem pretensão de derreter em lágrimas o brilho dos olhos da moça. O endereço do cemitério, a igreja onde seria a missa, tudo isso fora informado. Ainda assim, a presença de Lee não era esperada - e nem sabia ela se seria bem-vinda.
O sujeito homenageado no jornal, com aqueles mil anúncios emocionados de familiares e doutores em alguma coisa, fora seu primeiro namorado. Talvez o frio ao ler seu nome tenha sido maior - até porque já sabia do que se tratava aquela página cheia de retângulos. Urich, Leonardo Urich. Fora um sujeito forte, desses que vivem para os negócios, aprendem a ganhar muito dinheiro fazendo o mínimo esforço e - bastava cruzar os dedos - conseguiam as mulheres que desejassem. É claro que isso tudo acontecera depois, bem depois do "adeus".
Tinha sido realmente feliz com Giovanne, até encontrá-lo aos beijos com outra garota, em um bar de esquina. Sentiu o sentimento se evaporar, como sempre acontece com quem não aceita ser enganado. Não poderia negar que ainda o considerava o melhor de todos os caras que já conhecera, apesar do desgosto, do orgulho, ao lembrar do ocorrido naquele cinco de maio.
Desistiu de tentar entender os homens. Não gostava de olhar para trás sabendo que repetiria erros que, sabia, não tinham lhe ensinado praticamente nada. E, agora, Lee estava ali, diante de fatos tão cruéis e abstratos. A morte é um mistério para tantos...
Pensou em ligar para uma amiga, dessas que mantém contato com todos os ex-colegas de escola, que se encontram semanalmente com os amigos da academia, que têm na agenda do celular os mais diversos tipos de gente. Ela falava ainda com Urich, deveria ter alguma notícia para comentar.
Discou os números, mas abortou a ligação antes que essa fosse concluída. Se sentiu melhor ao não ouvir a voz de Maísa. Entre um gole e outro de café, pensou na possibilidade de aparecer na cerimônia fúnebre de um ou de outro, só não sabia qual. Urich era agora um homem imponente, importante para a alta sociedade. Seria enterrado na capital, num luxuoso gramado, rodeado de curiosos.
Giovanne, coitado, talvez nem lágrimas tão dolorosas recebesse: a família de um drogado nem sempre se despede dele com os braços recheados de flores e saudade. Fora fraco, é verdade: desde muito jovem era cheio de vícios, cheio de segredos e truques. Por sorte não seria cremado, pensou Lee, se imaginando diante do falecido, com um lencinho nas mãos. O problema em optar pela segunda alternativa era a distância: viajar para o interior pouparia boas horas.
Por Urich sentia um carinho único, gratidão pelos momentos mais marcantes - onde ele fora extremamente compreensível. Carinhoso, generoso com elogios e pequenos agrados: um bom partido desde menino. Planejaram um vida, com direito a jardim, filhos e viagens. Se esqueceram, porém, que certas características das personalidades das pessoas eram imutáveis. Pouco solidário, o tempo os fez lembrar disso, trazendo de volta a sujeira que fora escondida por debaixo do tapete.
Giovanne, o ex-hell, como Lee gostava de anunciar. "O cara que te leva aos céus e de lá te faz despencar.", comentara uma vez com Maísa. Procurou se concentrar no ambiente que enfrentaria, recheado de velhos conhecidos, sendo estes os pais e os parentes do falecido, pessoas que não fazia idéia de onde o conheciam, alguns amigos perdidos e alguma nova garota enciumada.
Consultou o relógio, releu o e-mail. O trabalho de ir ao enterro se tornava mais difícil a cada segundo. Trocar de roupa e pegar as chaves do carro era tudo o que tinha que fazer. Porém, o conflito de emoções a fazia ficar estacionada na cadeira, olhando do jornal para a tela do computador.
Dividida entre os dois homens, mais uma vez, decidiu usar o lenço branco que trazia consigo para limpar o contorno dos lábios, molhados de café. De qualquer forma seria sinismo fingir que se importava.
Gostaria de perguntar a Giovanne se o sexo com a outra era melhor do que com ela. Adoraria não ter ouvido de Urich que eles já não mais estariam unidos na vida e na morte. "Bem feito para ele!", pensou.
Lee fechou a janela do e-mail, amassou a folha de jornal e a jogou no lixo. Pensou em acender um cigarro, mas o gesto traria lembranças de Giovanne, de como ele brincava, concentrado, com a fumaça. Ao desistir de o fazer, lembrou de como Urich sorriria silencioso, afirmando com a cabeça que a atitude fora aprovada (era de se esperar de um médico hipocondríaco como ele era, ainda que tenha ido para o ramo da cirurgia plástica - o lado mais comercial da Medicina).
Abriu a segunda gaveta da escrivaninha, que mantinha chaveada, e puxou uma garrafinha de whisky que estava escondida sob alguns documentos da empresa onde trabalhava. Mirou-a por alguns instantes, então despejou parte do conteúdo na boca.
Urich fora incapaz de consertar os defeitos de Lee. Giovanne não se importava com eles - nem com ela. Pouco influenciavam na sua vida, agora que ela concluíra a faculdade e já era independente. Não precisaria mais deles, ainda mais sabendo que estavam debaixo da terra.
Pegou os documentos da gaveta e voltou ao trabalho. Assim o fez seu vizinho, no mesmo momento, abandonando a idéia de se despedir do colega. A mesma notícia, sobre pessoas não tão diferentes. Suas semelhanças? O vínculo com o mesmo sujeito, o encontro com a dama da barca no mesmo ano. Só não sabiam quando.
quarta-feira, 26 de março de 2008
Heartfixers.
"- Você não precisa me prometer coisas.
- Tá, mas eu quero. Não se preocupe, você não está me forçando a fazer nada.
- Eu sei, eu sei que não estou. Só que eu não quero as suas promessas como lembrança.
- Hey, que papo é esse?
- Ahh, não me leva a mal. Nós vamos ficar muito tempo separados, não quero que você se sinta preso.
- Preso? Eu me sinto bem. Vou sentir saudade, só isso.
- Exatamente. Saudade. Você vai estar carente, é natural que sinta vontade de estar com alguém.
- Eu vou querer estar contigo.
- Eu sei, só que eu não vou estar do seu lado... fisicamente, você sabe...
- Tá, mas eu quero estar contigo. Eu não disse 'com uma garota', eu disse 'contigo'.
- Você vai pensar besteira se eu não te ligar algum dia, vai me achar grossa se eu estiver com voz de sono, logo vai concluir que nossa relação mudou... e, então, existirão muito mais atrativos pelo mundo do que aqui, comigo.
- Puxa, tudo isso é pessimismo?
- Eu vou entender se você quiser experimentar com outras pessoas. Sabe, você vai estar num outro país, vivendo algo totalmente novo. Você pode ser quem você quiser, não precisa chegar lá de aliança.
- Isso é vontade de terminar comigo e partir pra outra?
- Não. Só estou mostrando o meu não-possessivismo.
- Você pretende ficar com outras pessoas enquanto eu estiver fora?
- Não planejo nada. Você sabe o que eu penso. Só não quero que você se sinta preso e infeliz por algo que um dia te deixou aparentemente bem.
- Aparentemente? Não acredita que eu esteja feliz?
- Eu não disse isso. Olha, serão meses... você pode encontrar uma pessoa mais legal por lá, pode conseguir um emprego maravilhoso, nunca se sabe...
- Então seus planos de me visitar e talvez ficar lá de vez nunca aconteceram?
- Eu só quero dizer que prefiro deixar tudo acontecer como deve ser. A gente vai acabar se machucando, mais cedo ou mais tarde.
- Então isso é um adeus?
- Não. No máximo um "até logo". Eu quero que você aproveite tudo o que puder e depois volte pra mim, se ainda quiser. Prefiro que a gente deixe tudo esfriar agora, de um jeito meio rápido. É melhor do que viver aquele sadomasoquismo lento que é a ruína de um casal...
- Ótimo. Perfeito. Brilhante, cara. A minha viagem dos sonhos virou uma passagem para a dor de cotovelo. Pelo menos vamos estar longe um do outro, não nos cruzaremos pelas ruas...
- Você aceitou bem rápido para quem não queria me perder.
- Acho que já te perdi há muito tempo, porque nunca te ganhei totalmente.
- Realmente. Eu não pertenço a você.
- Você fala isso com essa cara deslavada? Ah, pára...
E então ele foi embora, pensando que eu era algum tipo de garota malvada. Dessas que acabam contigo num momento de fraqueza, algo assim, foi o que ele disse. Não, não era o amor da minha vida, se é que isso existe. Foi melhor assim. Talvez um dia ele perceba que fiz isso porque gostava dele e não queria ver a relação esfriar gradativamente, sabe, como conseqüência de coisas que não poderíamos mudar, pois não estavam ao nosso alcance. No fundo, não foram muitas as lágrimas. Eu falo isso porque já imaginei como ia acontecer, sabe, o famoso momento da decadência, onde você tenta salvar tudo antes que a coisa naufrague totalmente. E eu penso que, se você sabe que vai acabar, não vale a pena investir. Talvez seja um pouco de conformismo, mas eu acredito que muitas vezes o tempo não gasto vale mais do que alguns momentos de delícias de casal. Me disseram que sou meio estraga-prazeres, meio frustrada. Mas acho que qualquer um agiria do mesmo jeito estando no meu lugar. O que eu quero dizer é que existem pessoas, heartfixers, que acabam se passando por heartbreakers sem querer. Ok, soa pretencioso da minha parte assumir uma postura angelical, mas a idéia é mostrar o outro lado da história. Na maioria das vezes, heartfixers (consertadores de corações, observe a breguice) são uns ferrados. Em outras palavras, eles lutam com as memórias dos ex-casos alheios, auxiliando com o ombro e a mão-amiga e, porque não, a boca. Num dia você está se lamentando pelos cantos, no outro alguém legal te arrasta pro cinema, para alguma festa, para longe das suas dores. Quando a novidade se insere no cotidiano e as coisas fluem, pode ser que ocorra algum afeto entre você e a sua grande amiga heartfixer ou coisa assim. Tudo bem, não preciso ser mais clara: as pessoas tendem a gostar de quem cuida delas, isso é fato. Não é um crime desejar se sentir bem. O problema ocorre quando a relação de compreensão e carinho se transforma num parasitismo. Os heartfixers, quando não são arremessados para o lado obscuro dos finais felizes, resolvem tentar consertar o novo relacionamento do seu (agora mais-que-amigo) ex-fossento (indivíduo que está na fossa). Acabam por tomarem as dores de todo mundo, mais uma vez, ficando com o terrível papel de vilão da história de amor. Vilões são sempre legais até a hora em que se metem com sentimentos, é essa a visão geral. Como eu mostrei, eu tentei consertar as coisas, oferecendo liberdade. Não pensava realmente em beber todas e acordar com um estranho pelado do meu lado, nem ter ataques de ciúme via-telefone ao ouvir sobre uma nova colega ou algo do gênero. Os caras têm mania de oferecer um pedaço de si, um coração destruído e esperar que eu conserte e devolva em bom estado, sem sequer perguntarem se eu preciso de qualquer coisa, um café que seja. Eu não sinto remorso, não sinto remorso. Talvez não devesse reclamar tanto, afinal nunca me entrego mesmo. Não em uma relação onde eu veja a linha do fim. Nunca vivi nada que parecesse realmente infinito. Mentira, vivi sim. Mas isso não me causou dores, não me fez mais amarga, nem heartbreaker. Talvez eu devesse aproveitar mais minha liberdade e não me sentir tão parasita de almas perdidas."