Duda regurgitou a comida, vomitou os comprimidos, bebeu tudo que podia beber e passou a manhã indo e voltando do banheiro. Azia e tédio. Pensou em recorrer ao casal gay de amigos que, vez ou outra, faziam o papel dos pais dela, mas a preguiça de se levantar do tapete felpudo e caminhar até o telefone era maior.
Dormiu por cerca de duas horas, a baba escorrendo pelo canto da boca. Era realmente uma garota muito bonita, dessas que, de uma hora pra outra, resolvem tingir o cabelo loiro de laranja e cortar a franja - como se acordassem para a vida ao se encontrar numa foto de revista.
O ringtone psicodélico a fez despertar dos sonhos escrotos, obrigando-a a procurar o celular em meio as folhas de papel vegetal. Plantas e mais plantas de apartamentos luxuosos, desses cujos panfletos são distribuídos nas sinaleiras das capitais, por moças de bonés e calças laranjas que, provavelmente, não foram muito sortudas na vida.
Recebeu uma mensagem de texto anônima, onde uma suposta colega de faculdade afirmava ter visto o namorado de Duda com outra pessoa, numa festa na noite passada. Não fora uma surpresa, afinal qualquer mal-feito é esperado quando um relacionamento não está bem. A confirmação pelos olhos da amiga fez Duda sentar no sofá, tentando se equilibrar e se livrar da tontura. Quanto mais lúcida estivesse melhor: fazer as coisas de modo impulsivo só faz piorar as conseqüências.
Em dois segundos desesperados já estava atracada no telefone, discando a única seqüência numérica que decorara nos últimos cinco anos. Quando informou que queria falar com Lilian ouviu sua voz sair fraca e tremida, o que ligeiramente a deixou envergonhada. Há muito deixara de ser uma boa companhia na visão dos pais da amiga. A bulimia e as constantes vezes em que fez escândalos por motivos insuficientes contavam pontos nessa observação.
Lilian não estava em casa, mas isso não impediu Duda de encontrá-la.
- Pode falar?
- Sempre. Que foi, cara? Tá de porre?
- Não, não é isso, não...
- Hum... Tá, fala rápido.
- Olha só, aquilo que eu te disse do Marcos... A Jô, eu acho, viu o Marcos ontem com uma vadia, cara.
- Vadia? Tá, mas ela viu a...?
- Ah, nem sei. Mas tanto faz, cara... sério, eu nem sei que que eu faço primeiro...
- Hum... mas, olha só, nem faz nada ainda, cara. Ele é um merda total né, nem podia ter feito isso contigo. Não deixa barato, cara... só pensa antes no que tu vai fazer.
- Ai meu, sei lá. Que filho da puta. Tipo assim... vontade de matar os dois, saca?
- Hum? Fala direito, porra. Tu tá falando toda errada.
- Eu quero ver quem é a vadia... e ele vai me dizer que porra é essa que ele tá fazendo, porque eu nunca fiz nada pra ele resolver fazer isso assim... ah, vai dizer, eu sou tri.
- Sim, cara. Eu te amo, cara, nem posso falar nada. Na boa, acaba com ele assim do nada e dá o troco. Nem precisa dizer que tu sabe o que houve e tal... ou sei lá, começa a sair com o Caio, que ele odeia e tal...
- Sim, eu vou ver ele hoje mesmo. E o filho da puta vai ficar sabendo.
- Tá, ele vai dormir aí?
- É né, óbvio.
- Ah, bela vingança então. Na boa, é o melhor que tu tem a fazer... porque ficar chupando dedo ou mostrando que tu se importa também nem eras né... o Marcos é muito otário de fazer isso contigo.
- Isso que eu pensei, cara! Eu não vou ficar chorando por causa dele e tal.
- Ah, meu, vou desligar.
- Tá, depois eu te ligo. E, olha só, se o Marcos falar contigo deixa quieto né, age normalmente...
- Sim, certo. Tchau, beijo.
- Ai, meu, tu é tudo! Beijo.
Lilian colocou o aparelho na borda da piscina, mergulhando em seguida para molhar o cabelo, que havia secado durante a conversa. Sorriso ansioso, entre o sentimento de felicidade e nervosismo. Vendo que o rapaz se aproximava, trazendo um copo em cada mão, ela brindou internamente mais uma conquista: "A Jô, eu acho, viu o Marcos ontem com uma vadia", pensou, rindo da inocência da jovem de cabelos repicados desbotados. Nada como um aparelho de celular cujo número não esteja na agenda do destinatário...
Ele entrou na piscina, indo de encontro às costas de Lilian. Um beijo delicado e uma pergunta: quem ligou? Ela contou sobre Duda, comentou o quão desequilibrada andava a amiga - que acordara meio enjoada e precisava da ajuda dela para resolver uns problemas.
- Tá, eu vou ser sincera: ela quer te pedir desculpas pelas merdas e tal. Eu acho que ela realmente se arrependeu, sabe, ela é meio imatura às vezes, mas é boa pessoa.
- Do nada isso? Ela sempre quer brigar por qualquer coisa, a troco de que ela resolveu que estava errada?
- Ela é orgulhosa, mas ela sabe que estava pegando demais no teu pé, Marcos. Além do mais, ela gosta de ti pra caralho, não ia querer deixar essa distância entre vocês.
- Hum... é, pode ser. Ela já correu atrás antes, né? Pelo menos ela não desconfia de nada.
- Da gente? Não, nunca... E eu falei pra ela mil vezes que tu é um cara legal, que isso e aquilo... Opinião de amiga é o que conta, né? Então, eu cresci com ela, cara, eu sei do que eu tô falando... Ela tá super na tua.
- Ah, sério, tu é foda. Super cretina, mas muito foda.
- Mas, assim, fica comigo aqui e depois que tu me deixar em casa passa lá...
- De noite?
- É, faz uma visita. Não custa nada... e tu ainda se passa por namorado superpreocupado, já que ela andava exagerando na dose, né.
- Sim, eu vou ver se vou lá e tal... mas a gente tem tempo até lá...
O final da história não é necessariamente feliz. Sendo ficção, é ótimo fazer com que tudo dê certo: Marcos resolve aparecer na casa da namorada, encontrando Duda aos beijos com Caio. Ela se sentindo vingada e não exatamente enganada, ele um tanto contrariado com a cena. Ambos pensaram em Lilian como uma heroína, cada um com seus motivos particulares e errôneos: braços abertos o tempo todo parecem ser realmente um privilégio impagável.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
heroína.
Assuntos:
amizade,
amor,
ficção,
heartbreaker,
não-ficção
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Bom texto. No início, quando eu li o título, eu achei que fosse falar de drogas ou algo do tipo, por cusa das primeras palavras também( hum, na verdade pensando bem eu n precisava falar isso...).
Mas sabe, isso não é totalmente apenas uma história. Tenho certeza de que isso acontece. Não contigo eu digo, mas acontece.
As pessoas que a gente conhece com o passar dos anos fazem com que os vilões das histórias em quadrinhos pareçam tão pálidos einsubstanciais perto deles. Eu sou um cínico por antureza, e talvez isso me faça ver o mundo em shades of black, mas de certa forma isso é somente uma maneira de proteção. Um anti-virus.
Se bem que eu acho que todos nós temos o potencial para o lado negro. Não digo massacrar populações, roubar...etc. Dependendo das circunstancias nós somos capazes de coisas boas ou terriveis.
Já falei demais. Fui.
haha ah, mas eu queria que ficasse heroína no duplo sentido (eu tentei isso botando o título tbm de heroína, mas eu não fui muito feliz).
ah, mas eu acho que bem e mal é questão de ponto de vista. no fundo tu sempre age pensando no teu bem (se não for por "egoísmo" no sentido de acabar ferrando alguém é porque tu quer ficar com a consciência tranqüila, o que pode ser que dê no mesmo).
todo mundo tem potencial para os lados mesmo. e, se pá, um pouco (ou muito) desse anti-vírus. :)
nossa, que traiçoeira!! e esses diálogos cheios de gírias, que massa! "meu, tu é tudo saca, escreve pacas" hehehehe XD
e acho também que tomo mundo tem potencial pro bem e pro mal. "A ocasião faz o ladrão" (tá, muito tosca essa frase feita).
adorei!
Postar um comentário