quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Acetona


O telefone tocou. Uma, duas vezes mais. Ela continuou sentada na poltrona, com o vidrinho de esmalte preto comprimido entre as pernas. Ouviu sua voz dar um aviso à pessoa que estava tentando contatá-la, algo sobre ela não estar disponível e, por favor, deixar um recado e aguardar. Fora uma mensagem infantilmente alegre, uma vez que o som desafinado do violão não fora abafado durante a gravação: nada surpreendente para uma jovem que reúne os amigos no apartamento com certa freqüência.

A camisa de flanela não cobria grande parte de suas coxas - e, ainda assim, a façanha era praticamente impossível levando em conta a posição da garota. As mãos recheadas de anéis prateados ganhavam destaque com a tinta nas unhas. O dia, lá fora, estava mais para domingo: vento, nuvens e menos luz do que o habitual. O clima, dentro da casa, era atemporal: o calendário mais parecia um enfeite, presente de mau gosto - não tinha muita utilidade.

- Natalie, eu sei que você está em casa. Tá, eu sei que você não quer atender, mas... Veja bem, eu estou ligando com a melhor das intenções, você sabe que eu não ligaria se não fosse por algo importante, né? ...Bom, você não vai responder que eu sei, mas eu sei que você está aí ouvindo tudo o que eu estou dizendo...

Ela se levantou, com os dedos esticados, para ir até a cozinha, onde pegaria um copo de água fresca e abriria a geladeira na saída, para olhar o que tinha dentro dela, como se isso fizesse parte de um ritual. Os pés se cruzavam a cada passo dado nas lajotas gélidas de inverno. Correu para a poltrona, com um biscoito amanteigado entre os dentes.

- Você não vai atender mesmo, né? Eu devia ter ouvido a Bonnie... devia mesmo. Tá, não era isso que eu queria te dizer mas, já que eu toquei nesse assunto, eu devo te contar sobre a Bonnie. Ela anda falando cada coisa, cada coisa mais horrível... Eu sei que a sua reputação não é das melhores, ela deixou isso bem claro, mas se ela continuar falando tudo o que ela diz ela também vai ser vista com maus olhos. Pode escrever que vai. Mas... e então? O que você tá fazendo que não pega nesse telefone? Ah, é o Gabu? Ele tá aí contigo?

Os farelos que rondavam a boca foram atirados para longe quando Natalie passou o dorso da mão pelo local, entediada. Tomou um gole de água antes de se esticar em direção a pequena mesa de centro, onde a embalagem de acetona estava. Bocejou ao desenroscar a tampa azul e, em seu lugar, encaixar uma bolinha de algodão colorido. Estava sozinha e sem paciência para o mundo, ainda que o máximo de perigo que esse oferecesse no instante fosse o monólogo de uma conhecida que parecia não ter o que fazer senão criar problemas em relacionamentos praticamente inexistentes.

Antes que pudesse ouvir mais da boca de Lee, apertou um botão qualquer do aparelho, o que fez com que a ligação fosse abortada. Assustou-se ao ver um vizinho, na janela de frente para a sua, e correu para fechar as cortinas. Tudo pareceu mais mórbido e perfeito. Passou a mão pelos cabelos bagunçados e mais uma vez se acomodou na velha poltrona.

- Gabu... - Natalie riu. Agitou o frasco de acetona e pegou o pedaço de algodão encharcado, aproximando-o do nariz. Repetiu o movimento incessantemente e não tardou a fechar os olhos, extasiada. Os telefonemas seguintes, que também não receberam atenção, foram ouvidos silenciosamente apenas por Bonnie que, após acordar e se perguntar onde estava, avistou uma roupa que não lhe parecia estranha na sala. Não entendeu o que fazia a camisa do namorado no corpo da amiga. E nem tentou achar explicação. Tirou o frasco de acetona do colo de Natalie e pôs-se a sentir seu aroma.

Nenhum comentário: