quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Manuscrito.

E, assim que a porta bateu, os belos olhos se voltaram para o manuscrito que repousava sobre o travesseiro. Teria o tempo de um banho para vasculhá-lo, encontrar o que queria e devolvê-lo ao seu lugar de origem, com a aparência de intacto. Não seriam poucos minutos o problema, mas o virar ou não de páginas.

Clara era uma jovem bonita, de cuja pele fazia jus ao nome. Podia ter aos seus pés quem quisesse sem muito esforço. Sofia não era muito diferente disso, apesar de gostar menos de exposição. Se conheceram e desenvolveram uma relação incomum de afeto, onde a dependência que uma tinha da outra era constantemente perturbada pela rivalidade.

O tempo de um banho seria suficiente. Mais que o suficiente, pensou. A convivência com a dona das palavras fora útil, uma vez que ficara fácil trapaceá-la depois de ouvi-la falar sobre suas manias mais particulares. O hábito de contar seis dedos de margem e então alinhar o diário ao contorno imaginário fora uma descoberta essencial - um centímetro a mais ou a menos denunciaria uma invasão de privacidade.

Abaixou o volume da música, temendo que os passos fossem abafados. Ajoelhada do lado do rádio, com as mãos sobre os joelhos ossudos, hesitou por mais alguns segundos. Já tinha resistido demais. Engatinhando em direção ao beliche, confirmou com o canto dos olhos que a porta fora bem fechada.

Com dedos trêmulos e magros, acariciou a capa peluciada que embalava aquele recheio de segredos. Pegou o diário com as duas mãos bem firmes, mas não pôde impedir que uma foto escorregasse do meio das folhas. Atrapalhada, resolveu continuar a busca e deixar para depois a solução para o imprevisto.

Letras de música, recortes e rabiscos preenchiam aquelas páginas virgens, que sequer traziam linhas. Notas de trabalhos, medidas de busto, quadril, altura, amostras de cabelo presas com durex. Sofia reconheceu seus fios castanhos entre os demais e sorriu carinhosa e silenciosamente. A alegria e a sensação de bem-estar não demoraram a desaparecer.

Os olhos belos passaram de lacrimosos a perplexos e o nervosismo só não foi maior porque a surpresa, no caso, fora uma confirmação. Não duvidava que Clara fosse capaz de fazer o que fez, só não esperava que fosse verdade - mais ou menos esse filme passava em sua mente. O problema agora não era descobrir o que tinha realmente ocorrido, mas como conviver com uma desconfiança que nascera sem motivos e crescera a ponto de comandar ações.

Fechou o manuscrito com um tapa e ajeitou-o sobre a fronha com tal violência que amassou-a consideravelmente. Alimentar uma ilusão é uma coisa, vê-la sair de seu controle é outra. Não dominava mais a situação no papel de vítima: agora Sofia podia ser tão culpada quanto a amiga. "Amiga".

Não é à toa que Clara se mostrava tão carinhosa... provavelmente era um jeito de se redimir. Seria de melhor praxe mudar o vocabulário para uma direção mais coerente - quem sabe se tentasse argumentar, explicar seus sentimentos? Clara não faria isso. Clara não fez isso.

Uma garota tão racional - a outra tão flexível. Uma de língua afiada, a outra um tanto passiva. Uma de humor negro e cigarro, a outra de gatos e vinhos. Uma de branco no preto, a outra de preto. Só preto. Talvez não combinassem em tudo, talvez nem combinassem no mínimo - o fato é que seus laços eram realmente incompreensíveis para observadores novatos. Nem nós, nem laçarotes: eram laços impecáveis, fortes, simétricos.

Quando a toalha voltou ao quarto, dessa vez molhada, foi atirada na cama com indiferença. Sofia mais uma vez estava sentada no chão, do lado do espelho vertical, com as costas repousando na parede fria e úmida. O rádio do lado, em volume mais alto do que o normal.

Clara agitou os cabelos, de forma a jogar água na garota. Completamente nua, se abaixou para fitar os olhos belos. Levantou-se silenciosa, esticando os braços para o alto e observando seu corpo no espelho. Questionou se tinha engordado, obtendo um não como resposta. Passos para trás e uma coisa grudada no pé direito: entre o indicador e o polegar de Clara estava a foto que caíra do diário.

Assoprou para fora da foto algumas gotas cristalinas e fixou-a num porta-retrato da escrivaninha, esboçando satisfação ao fazê-lo. No fundo, não era o que sentia. Sabia o que tinha acontecido, mas ainda não entendia sua posição quanto a isso. Achava realmente mais fácil ser lida do que ouvida e não esperava reação diferente de Sofia quanto à notícia - embora, em seu íntimo, quisesse acreditar que a garota não tocaria no manuscrito.

Se encararam por alguns segundos, Sofia encostada na parede, abraçando as pernas magras, e Clara sentada na cama, com o tronco pendendo para a frente. Se entendiam completamente, conhecendo a situação em que a outra estava e o que supostamente sentiam. E sentiam como ninguém. A frieza de uma era corrompida pela ingenuidade da outra. Eram como sombra e luz, num jogo de amor e sofrimento. E o manuscrito era só um capítulo à parte.




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