quarta-feira, 13 de maio de 2009

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- Não quero, sabe? Não quero ser como essas pessoas que passam um terço da vida dormindo e outro terço acordadas.
- Um terço acordadas? Você se enganou, querid...
- Não, é um terço mesmo. Um terço do tempo acordadas. Sabe, a gente tende a viver de olhos fechados, seguindo uma rotina mecânica de coisas que deixamos nos impor - para manter a ordem, eu sei -, e deixamos de lado o que, no fundo, realmente conta para a nossa felicidade.
- Eu acho que esse tipo de pensamento só faz com que nos sintamos diferentes em relação ao todo. Isso nem sempre é bom.
- Nem sempre é bom, mas é o preço. Sabe, falar sem parar por exemplo: as pessoas estão acostumadas a regrar tudo, a fazer caretas e a achar esquisita qualquer conversa que seja realmente espontânea, entende?
- Mas o fluxo de pensamentos da sua cabeça é diferente do de outras pessoas. Se não existir uma convenção, ninguém nunca vai se entender.
- Não, não! Eu quero dizer que, se eu parasse aquele cara que está atravessando a rua para elogiar seu corte de cabelo e perguntar o que ele achou daquele escândalo dos dejetos encontrados em caixas de leite, provavelmente ele me acharia uma pessoa esquisita e inconveniente - quando deveria se manter neutro e responder, se estivesse afim.
- Você acha que ele não o faria? Sabe, se todos tivessem esses ímpetos de falar o que desse na telha o mundo não seria mais tão sério. Eu tô falando de seriedade, sabe, de responsabilidade. É muita inocência achar que as pessoas seriam mais felizes com esses diálogos randômicos esquisitos.
- Mas nós, por exemplo, vivemos tendo esses diálogos e sabemos o quanto são bons!
- Mas nós somos nós. Nós não dormimos um terço da nossa vida, estamos o tempo todo acordados pra tudo... é por isso que nos damos bem. Eu, sinceramente, não queria perder isso para essas pessoas que nem se importam.
- É, pode ser. Pretensão demais, né?
- Acho que, se eles estão satisfeitos, melhor pra eles. Teria um certo incômodo se tudo o que eu gostasse fizesse parte do gosto comum.
- Depois eu que tenho mania de ser diferente...
- Não é mania de oposição, de chamar a atenção, essas coisas... só não gosto de dividir o banco com gente que não pensa, que só aceita tudo sem nem ter uma opinião a respeito. Seja um comodista, mas com consentimento!
- Engraçado te ver falando assim. Nunca sei que assunto vai te empolgar ou te deixar com aspecto de mofo.
- Isso é de todo mau?
- Não, não é mau. Eu quero dizer que gosto que você não seja previsível aos meus olhos. Eu fiquei pensando a respeito da "pessoa perfeita" e cheguei a conclusão de que a minha versão disso seria alguém com defeitos. Porque, pra mim, pessoas sem defeitos são plásticas - nem perfeitas são!
- Eu gosto de pessoas de verdade...
- Sim, é isso. Eu gosto desses dois lados, acho rico poder ser uma grande pessoa por um lado e um pouco desprezível por outro. Acho legal assumir características que não nos remetem ao sucesso do bem-estar coletivo...
- Ah, é que o pecado se estabeleceu em tudo... Depois que a idéia de culpa surgiu, nunca mais fomos os mesmos. Sentimos culpa quando não sentimos culpa por fazer algo "errado", por exemplo. Isso é ridículo.
- Eu não sei o mal que existe por trás da nossa imperfeição. Isso assusta tanto as pessoas... elas ficam mentindo umas pras outras para se mostrarem melhores, sendo que isso é ainda pior do que fazer uma propaganda negativa de si mesmo.
- É, eu também não entendo isso. E também acho curiosa nossa mania de gastar um terço do tempo nos perguntando como os outros não são como nós.
- Mas isso me faz feliz, entende? Não falo isso pensando em inconseqüências da adolescência, mas acredito que esse "um terço" (dois, na verdade) deveria ser para a gente se divertir, procurar diversão nas coisas que nos são oferecidas.
- É, isso não me aborrece. Eu gosto da maneira como eu admistro meu tempo, principalmente como isso tem se dado nas últimas semanas...
- É. Ok, posso dar play? Você já buscou o saleiro, agora podemos retornar ao filme.
- Sim, claro. Ah, só uma última coisa: eu gosto de como a gente demora umas cinco horas para conseguir fazer alguma coisa que já estava programada. Eu quero dizer... é espontâneo. Fico feliz em ver que não somos mecânicos e conversamos quando temos vontade.
- Pois sim. Ah, já te mostrei o livro que eu comprei?
(...)


2 comentários:

Cazú disse...

Rá!

Já estava perfeito - mas o final deixou perfeito ao cubo[isso significa muito bom].
Eu.. Eu adorei o texto - sério mesmo.E, eu acho que tem todo seu fundamento. Crescemos sendo felizes de acordo com um estilo de vida que nos é imposto - sem a menor idéia se aquilo realmente vai fazer bem ou não!

Eu, por mais anti-social que eu seja - as vezes passo por pessoas na rua, que dão à idéia de serem legais... Eu sinto vontade de conversar - mas penso que já são arredias com um simples "oi" - imagina um diálogo mais sério!?

Mas enfinho...

huasuhasuhasuhasas

O texto me fez viajar em outras coisas também... aliás...
Bom..

Adorei - muito!

beijos³ ^^

Meteoro disse...

"Sentimos culpa quando não sentimos culpa por fazer algo 'errado'"

Bah, falou tudo! Acho que até tava falando contigo sobre isso, esses dias...
Ficou muito tri-foda!

oyooo, "comentários RANDÔMICOS", that's the way!
beijo-beijo, let's hang out in the graveyard!