sexta-feira, 14 de março de 2008

Cheguei cansado, com os pés embarrados e o casaco molhado de água da chuva. Me sentiria melhor, não fosse o olhar de desdém da secretária vadia. Logo ela, que passara a vida mordendo canetas e cruzando e descruzando as pernas maliciosamente para qualquer um... agora estava ali, jogada na cadeira, com um sorriso zombeteiro. Passei reto, ignorando seu cumprimento forçado de boa-educação. Usar a educação é a típica maneira de ser simpático sem necessariamente ser simpático.
Na sala ainda tinham umas cinco cadeiras vagas, além das quatro ocupadas. Um velho alto lia jornal. Eu não sou muito jovem não, mas essa moda de colete e sapato de couro combinando já é bastante ultrapassada. Tudo bem, ele estava mais elegante do que eu, que usava uma jeans detonada e uma camisa bonita - com uma mancha de clorofina bem discreta, do tipo que só as mulheres percebem. Uma velha bem enxuta estava sentada do lado de uma moça atraente, que folheava uma revista de decoração. Deviam ser mãe e filha.
Sentei na frente do ar-condicionado, perto de um cara que parecia ser muito mala. Ele usava uma camisa xadrez amarela para dentro das calças beges. Os óculos e o notebook não deixavam dúvidas de que ele trabalhava demais e não saia com uma garota há séculos. Eu fiquei tentando espiar o que ele estava fazendo, meio surpreso em não encontrar números nem tabelas. Xadrez, o desgraçado estava jogando xadrez.
Eu passei grande parte da minha infância jogando xadrez. Meu pai era viciado e precisava de companhia "à altura", então eram raros os dias em que eu ocupava meu tempo fazendo outra coisa. Nunca fui fã disso, mas não perco para ninguém. Acontece que o cara da camisa amarela e cabelinho ao lado estava ali, prestes a cometer uma burrada fatal... eu não pude evitar: dei um tapa na cabeça dele. Na hora eu sei lá o que eu pensei, achei que fosse parecer idiota e intrometido dizendo que ele era ignorante e deveria mover a torre. Bater nele estava fora dos meus planos, mas foi o que - sem querer - aconteceu.
Ele me olhou surpreso, depois de dar um gritinho. A secretária estava pegando uma lixa para as unhas na bolsa, então não viu nada. Eu disse para ele que tinha uma mosca ali e aproveitei a deixa para me aproximar e dizer qual seria a melhor jogada a fazer. É, eu também não ouviria um estranho que chega com tiques nervosos... Azar o dele: perdeu para o computador. Fiquei ali orgulhoso das minhas habilidades, enquanto ele abria o jogo de paciência e franzia a testa.
Um sujeito aparentemente mais azarado que eu entrou na sala. Ele estava de chinelo de dedo, com gesso num dos pés (que, por sinal, estava ensacado com sacolas de supermercado provavelmente por causa da chuva). Parecia ter a minha idade e também não se vestia como aquela gente sem-noção. Na verdade ele tinha muita barba e uma tatuagem estranha no antebraço. Era uma tentativa de carpa preta eu acho, mas parecia um besouro.
O dentista abriu a porta e se despediu de uma mulher gostosa com quatro beijos nas bochechas. Ela era realmente estonteante e me senti um merda quando o velho do colete levantou e a abraçou. Eu pensando que ele era o pai dela... mas o putinho era namorado. Provavelmente ele tinha um carrão, alguns dólares e uma doença em estágio avançado. Adoraria que ela tivesse visto meu olhar de filme, desses que a gente ensaia para quando a garota realmente vale a pena. Eles saíram da sala juntos, entre beijos e risadinhas que faziam meu estômago revirar.
O próximo deveria ser eu, que estava vinte minutos atrasado, mas acho que não preciso comentar que toda aquela gente seria atendida primeiro... Levantei meio impaciente, me dirigindo a secretária. Ela fingiu não me ver e ficou mascando chiclete enquanto desenhava cubos tortos em uma planilha. Puxei a caneta da mão dela e desenhei algo decente, tipo um cavalo. É meio infeliz, mas eu sei desenhar cavalos. Ela nem deu bola, voltou a olhar as unhas e aparar as que estavam maiores.
Sentei de novo, dessa vez do lado da velha. Estava entediado, mau-humorado, afim de beber algo e passar a noite trocando de canais de tevê. Filmes de ação, pornografia e amendoim japonês: nada melhor do que noites de sexta-feira com a casa vazia. Eu não tinha namorada, então não tinha ainda muita responsabilidade - até por isso não me importava muito com o pneu de cerveja que se apresentou à minha barriga em uns dois meses de vida solitária.
A velha abriu a bolsa e pegou umas moedas. Pediu para a filha comprar um refrigerante, uma água, qualquer coisa. Ela se negou, alegando umas mil coisas que eu não sei o que tinham a ver com o assunto (mulher a gente não entende, né). Eu me meti na conversa, disse que não me importaria de ir - desde que ela me desse um gole. Ela fez uma careta bizarra, como se aquilo fosse coisa de outro mundo. Já não bastava aquela trilha sonora de consultório, tinha uma dupla feminina tentando me fazer ouvir um discurso sobre bom-senso. Me irritei e saí dali. Fui até a esquina e voltei com uma latinha de guaraná na mão. Light. A única que tinha.
Fiquei meia hora babando naquela porcaria de lata, fingindo alguns suspiros e sorrindo como um babaca. Só para parecer que o refri estava gelado e gostoso - no fundo, estava bem longe disso. O cara do notebook tinha sumido. Imaginei que estivesse com uma maquininha na boca, morrendo de dor, mas a secretária tosca pareceu ter lido meus pensamentos e disse que ele saiu depois de receber um telefonema. Convidei ela para sair depois, dizendo que estava com minha moto na rua de trás e que até daria carona de volta. Ela disse que não ia, que estava tendo um caso com meu dentista - e me mostrou a aliança. Achei aquilo deprimente.
Notei que a velha também não estava ali, apenas a moça da revista de móveis. Pensei em puxar conversa, mas não o fiz. Olhei para o cara do gesso, mas ele sequer prestou atenção nisso. Estava com fones de ouvido, mexendo a cabeça. Eu caminhei até o banheiro, que ficava no corredor. Fiquei bastante tempo sentado no vaso sanitário, pensando que estava prestes a parir o maior cocô da minha vida. É sempre assim, nesses lugares nada-familiares, que a gente bate nossos recordes...
Voltei para a sala e fui atendido em seguida. Passei pela secretária todo caliente, cuidando a reação do dentista - que foi mínima. Droga, ela me enganou também. Voltei pra casa para o meu programa noturno de homem solteiro. Liguei a tevê e lá estava o cara da camisa amarela, falando sobre economia. O programa em que este estava, ao vivo, permitia que o público ligasse para participar - até porque era uma emissora podre, do tipo que ninguém assiste (só eu, enquanto os filmes de ação não começam). Xinguei ele, disse que era um merda e não sabia jogar xadrez. Putz, disse meu nome verdadeiro no ar... provavelmente seria alvo de piadinhas dos colegas de trabalho segunda-feira. Fechei os olhos e dormi na cadeira.



2 comentários:

Chantinon disse...

Ah! Agora ficou melhor!
Velhinhos são criaturas mágicas...
Gente ruim também fica velha, mas os do lado legal da força são mais alegres!
Apesar ser quase "idoso", meu blog também é assim como o seu... contestador!
Só que você foi logo no outro que é sobre 3D... O outro é mais esculhambado, gostarás mais! :)

Juizo! e PLUR! :)

thiago hakai-so disse...

rs...

Bela escrita... escreves de um jeito que parece que acompanhamos os pensamentos aos poucos quando vãos e formando... lá pelas tantas, não se sabe se o que escreves foi o que pensou o personagem ou fomos nós!